Retrato em Tons de Cinza

Caros Marianos,

Há algumas semanas conheci este site e, como outros que aqui já se manifestaram, li seu conteúdo de forma obsessiva. Acredito que se não o li integralmente, faltou pouco.

Foi gratificante voltar a ver referências a nomes que ouvi tanto e que há muito encontravam-se adormecidos em minha memória (lembro-me do D’Amaro, do Marcos Uchoa, do Wagner Marchiori, etc., embora, possivelmente, não se recordem de mim, já que eram mais velhos e eu um moleque) tendo convivido diariamente com vários (que citarei, oportunamente), muitos dos quais recordei com saudades, e outros nem tanto, sejam eles ex-numerários ou ainda numerários. Hesitei bastante em intrometer-me, pois creio que a opinião dos organizadores do site já está mais do que formada e exposta, ao passo que repetir as mesmas histórias já contadas não levaria a qualquer propósito.

Por outro lado, qualquer defesa do Opus Dei que alguém tenha intenção de fazer neste espaço, que tem sido bastante democrático quanto à divulgação de idéias contrárias às suas, diga-se de passagem, será alvo de um intransigente e inteligente combate, dados os talentos manifestos dos organizadores e a finalidade a que se dispuseram.

Daí que tinha dúvidas quanto a ser oportuno ou não deixar minha condição de mero espectador (muito embora sem aquele traço de torcedor - para um ou outro lado - exposto na tipologia dos ex-numerários). Afinal, como diria o Jean, ironizando, cabisbaixo, olhando de soslaio o interlocutor: "Eu? Pô, tô quieto..." (lembra disso, Jean?).

Acabei por decidir me manifestar, embora não saiba ao certo a que propósito, arriscando-me a ser interpretado das mais diversas formas por aqueles que têm as mais diversas opiniões já formadas, e sem a menor pretensão de influir nas mesmas, mas apenas para expor meu ponto de vista. Talvez seja a tal da catarse tanto referida no site, pelo que, se não for sequer publicada minha manifestação, pouco me importa.

Talvez alguns achem que escrevi para atacar a Obra. Outros talvez pensem que para defendê-la. Não me parece que tudo seja preto ou branco. Há as zonas cinzentas que permitem uma opinião intermediária.

Como tantos que aqui se manifestam, sou ex-numerário. Apitei no dia em que completei 14,5 anos, em 1980, na Vila Mariana, então dirigida pelo Eugênio Callioli, depois de ter freqüentado o Clube Forja, no qual o primeiro monitor de quem tenho lembrança foi o Davi Fernandes (que também vi por aqui), seguido pelo Nacho Poveda e outros tantos...

De lá, fui ao Centro de Estudos (biênio 83/84), onde conheci o Demétrio, o Levi Bonato (hoje ordenado) e convivi com o Jean, o Zé Eduardo, o Pe. Vicente, o Pe. Teixeira (que era meu vizinho de quarto), o Rubens M., o Marcos Adelino (hoje Padre Marcos Adelino), o Henrique Elfes, o Rafa Ruiz, o Ivan B. (que figura!) etc., etc., etc...

Terminado aquele período de intensa preparação, fui morar em Pinheiros, tendo, sucessivamente, como diretores, o Gaspar (muito pouco tempo), o Pablo G. e o João Malheiro, onde ainda convivi com o Pe. RS, o Pe. Ricardo, o Fábio Cerquinho, o LH (até ele passar a ser adscrito), o Fernando Salles, e o Marcelo Saba (este companheiro de idêntica e contemporânea jornada desde a Vila, tendo nossos caminhos apenas divergido quando saímos ambos de São Paulo) só pra ficar naqueles que já foram citados por aqui.

Assim que conclui minha graduação, no início de 1988, mudei-me para o Centro de Brasília, onde morei até sair da Obra em 1990 (exatos 10 anos após meu ingresso). Ao longo daqueles anos, vivi histórias idênticas ou análogas a muitas que foram contadas neste site, as quais me incomodavam demasiado, principalmente as tais quotas de vendas ou contribuições (sempre fui péssimo nisso), seguidas daquelas reuniões de acompanhamento com premiação dos bem-sucedidos e humilhação dos fracassados (isso, no âmbito das empresas, tem sido sistematicamente coibido com pesadas indenizações por danos morais em favor dos vendedores ridicularizados em reuniões de avaliação de desempenho).

Também não me agradavam aquela tendência "espanholizada" de ter a truculência e grosseria como sinônimo de virilidade e arrojo.

As cobranças constantes e sistemáticas ("Falou com quem hoje?" "Cadê seu plano apostólico do dia?"...) também não eram nada confortáveis. Ademais, achava que deveria falar de Deus com quem fosse meu amigo (tivesse afinidades, etc) e não ficar amigo de alguém (de quem, às vezes, humanamente falando, nem ia muito com a cara) para falar de Deus... O distanciamento injustificado e desnecessário da família também me incomodava. Se era razoável que estivesse pouco com meus pais enquanto morava em Brasília e eles em São Paulo, não via nenhuma razão para que fossem tão raros os encontros quando residíamos na mesma cidade e a visita em nada contribuiria para o fracasso do empreendimento apostólico da Obra (o que seriam aquelas poucas horas?). Da mesma forma aquele desespero para voltar à cidade de origem no primeiro ônibus possível após o término do retiro ou curso anual, desperdiçando a ocasião de um almoço com a família que atrasaria em poucas horas a viagem...

Aos poucos fui me persuadindo de que aquela não era a vida que queria para mim e, como tantos, saí. Não sem antes ter um pouco de trabalho (já pensara outras vezes em sair e acabara sendo convencido a não fazê-lo, na linha do "compele ficare", mais no estilo do "prato de lentilhas" do que pela forma apocalíptica descrita em outros depoimentos, embora recorde de algumas conversas neste sentido também - aliás, lembro-me que o ex-Pe. RS teve participação ativa na frustração de minha saída, quando ainda morava em Pinheiros).

Saí, mas saí sem traumas, passando a tocar minha vida com meus 24 anos, bom humor e graça de Deus, que nunca me faltaram, devendo destacar que deixei a Obra, mas não a Igreja, os sacramentos e, porque não dizê-lo, até mesmo algumas das práticas de piedade aprendidas ao longo daqueles anos e que me ajudam a manter alguma vida interior.

Claro que também passei pelo constrangimento de, casualmente, encontrar algum numerário por aí e ser totalmente ignorado, como se eu nunca houvesse existido, apesar de pouco tempo antes dividirmos a mesma casa e a mesma mesa.... Fazer o quê?...

Hoje estou muito bem, pessoal, social, familiar e profissionalmente, tendo permanecido pelos rincões do Centro-Oeste, residindo com minha esposa e filhos no interior goiano. Pois bem, exposta minha trajetória, qual a avaliação que tenho de tudo pelo que passei? Em que pese não me ter sido, quando apitei, detalhados os contornos e todas as conseqüências da entrega, inclusive todas aquelas regras que disciplinam as atividades mais comezinhas do dia a dia do numerário, ficou bem claro que a mesma seria TOTAL. Ora se é total é tudo, ou seja, me disponho, mediante um contrato de adesão, a topar o que vier pela frente. Outra questão é saber se um adolescente daquela idade tem condições de avaliar tais conseqüências e deliberar validamente sobre o assunto... Mas que sabíamos que era total, isso sabíamos (não me parece correto afirmar, como li em algum lugar aqui no site, que "apenas sabíamos que não iríamos casar". Isso seria muito pouco para quem se propõe a entregar tudo).

Portanto, que a vida de numerário é exigente, nunca nos esconderam.

Podemos ter discordância, eu as tenho e por isso saí, quanto a serem justificáveis muitas dessas exigências (nos mais diversos âmbitos), da mesma forma que podemos ser críticos à forma de atuação tanto da Obra institucionalmente, como de alguns (quiçá muitos) de seus membros, sejam eles diretores ou não.

Pessoalmente, tenho claras restrições tanto a procedimentos da Obra, como à conduta de parte de seus membros, em determinados assuntos. Daí a concluir que a Obra seja intrinsecamente má e vise o mal em si, principalmente dos numerários, abstraindo-se de todo o mais e combatendo-a incansavelmente, acredito que vai um salto muito grande com o qual não concordo. Poderia também, hipoteticamente, ocorrer o seguinte: não me agradar a espiritualidade e a forma de viver o catolicismo por parte do beneditinos, diante da sisudez com que vivem a fé, preferindo a alegria, descontração e ânimo da renovação carismática. Ou ocorrer o contrário, preferindo aquela forma a esta.

Mas tal fato e as eventuais críticas que possa ter a uma e a outra, não lhes tira a condição de uma das muitas vias pelas quais podemos viver nossa fé, estando ambas integradas à Una, Santa e Católica Igreja. Acredito que a Obra faz bem a muitas almas, apresentando-lhes uma de muitas formas de viver intensamente a vida cristã, independentemente de virem a apitar ou não, inclusive aos numerários, não me parecendo que todos os que estejam por lá sejam infelizes, frustrados, alpistados, ou em vias de vir a sê-lo. Muitos dos que com quem convivi pareciam-me perfeitamente integrados àquele modus vivendi, sendo exagerado concluir que ou não conseguem sair, ou ainda não perceberam o que acontece, mas perceberão, etc. etc.

Por outro lado, não me parece que aqueles que deixam outras instituições da Igreja estejam imunes a todos os problemas e queixas relatados aqui no site. Há erros de conduta? Acredito que sim. Mas daí a achar que se trata de Opus "diaboli", parece-me muito rancor e maniqueísmo.

De minha parte, mesmo com as restrições que tenho e o que passei ao longo dos dez anos de numerário (os quais não foram integral e totalmente um inferno como parece que alguns dão a entender), mesmo não me arrependendo em nenhum momento de haver "desapitado" e dado outro rumo a minha vida, não posso deixar (ainda que correndo o risco de atrair a ira de tantos amigos que hoje se dedicam a este site) de ser grato a Deus por me ter proporcionado aquela experiência, e à Obra por me ter proporcionado uma sólida formação espiritual e doutrinária (que até hoje muito me ajuda na educação e formação de meus filhos) e, porque não dizê-lo, até mesmo humana (para a qual, sem dúvida, dentre diversas outras pessoas, muito contribuiu o Jean, com todo aquela sua cultura e seu jeito cativante de torná-la acessível a um moleque de 17/18 anos), desde aspectos materiais até outros mais elevados, como os culturais.

Outrossim, não posso olvidar que na Obra aprendi a estudar e a trabalhar, sendo que, dificilmente, dadas minhas origens sociais (contrariando aquela máxima de que à Obra interessam os ricos), teria, sem conhecê-la, estudado onde estudei e galgado as posições profissionais que galguei. Quero deixar bem claro que não pretendo, com esta manifestação, suscitar discussões ou acalorados debates a favor ou contra o que quer que seja, ou mesmo fazer uma intransigente e incondicional defesa integral da Obra, mas apenas relatar meu ponto de vista, sem a menor pretensão de influir na formação da convicção de ninguém, mas para deixar claro que, além de vida após o Opus Dei, também há gratidão à mesma, ainda que dentre o muito bem que me fez, possa ter feito algum mal.

Agora, meus amigos, fiquem à vontade para tecerem seus comentários e apontar contradições que, pela ótica de vocês, sejam vistas em meu depoimento, seguramente incluindo-me dentre algum dos tipos elencados na tipologia do ex-numerário. De minha parte, feita minha catarse, o que mais me alegraria seria poder encontrá-los pessoalmente, de preferência em um bom ambiente de bar, acompanhados por uma cerveja bem gelada, aí em São Paulo ou por aqui (se for aqui garanto ainda o churrasco) para, abstraindo de nossas eventuais e pontuais divergências, lembrarmos dos bons momentos (ninguém seria capaz de negar que existiram) que passamos juntos em uma outra vida....

Recebam todos, inclusive aqueles que eu não conheci e aqueles que não se lembram de mim, um afetuoso e saudoso abraço.

Paulo Sérgio.