Fazendo o tempo andar para trás

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Introdução

Depois de ler o texto impressionante de E.B.E. sobre "A Obra como Revelação", decidi-me a tentar escrever a história da 'minha vocação' na Obra. Juntamente com a clareza das demonstrações feitas por E.B.E., tenho presente as seguintes passagens da Carta de D. Álvaro publicada na web:

¡Qué trágica mentira cuando la infidelidad se pretende camuflar bajo apariencia de amor! Judas traicionó al Señor por dinero, Demás abandonó a San Pablo por los placeres de esta vida...: en el fondo, siempre es el egoísmo, la soberbia, es el yo desorbitado el que impide la fidelidad. Para nosotros, la fidelidad a nuestra llamada significa fidelidad a la vocación cristiana: al Amor de Dios. Se entienden por eso las palabras fuertes de nuestro Padre: si alguno de mis hijos se abandona y deja de guerrear, o vuelve la espalda, que sepa que nos hace traición a todos: a Jesucristo, a la Iglesia, a sus hermanos en la Obra, a todas las almas. Carta de D. Alvaro, marzo 1992, páginas 68-69]

São palavras fortíssimas que muito me magoaram ao lê-las no écran; não me recordo de as ter lido no início do anos 90, mas certamente que as ouvi em algum meio de formação. Provavelmente numa altura em que estaria 'alheada' do conteúdo de tais missivas que me pareciam sempre idênticas...

A forma mais expressiva de 'contar a minha história' (para além do muito que já escrevi no meu testemunho anterior - "Luzes e sombras...") será começando do fim para o princípio, ou seja, desde a minha saída da O. até ao meu pedido de admissão duas décadas antes.

Queria esclarecer que a razão pela qual nem sempre dou dados precisos acerca da minha vida é a de evitar a identificação por parte de pessoas que me são queridas (familiares e amigas) e que permanecem na O. Não quero de forma alguma fazê-las sofrer…

A saída

Dexei a O. num dia 19 de Março, depois de ter comunicado que não renovaria a oblação. Foi uma saída inteiramente pacífica e não traumatizante, facto que muito agradeço às minhas ex-directoras. Mas tal não se deveu à minha condição de supranumerária, mas antes ao facto de o meu afastamento da O. se ter dado progressivamente ao longo de mais ou menos doze anos… No fim, quase ninguém ficou surpreendido com a minha decisão.

Espantosamente, tendo transmitido a decisão de não renovar à pessoa com quem fazia a conversa, esta começou por me dizer que eu teria de falar com esta e aquela directora (o que me incomodava muitíssimo) e acabou por me informar que afinal já não seria preciso.

Assim, senti a minha saída como uma 'libertação' vivida com muita paz e serenidade, pois que há já muito tempo que esperava apenas pelo momento oportuno…

O que entendia por 'momento oportuno'

Creio que afectiva e psicologicamente 'deixei' a O. quase dez anos antes de a ter deixado efectivamente. Claro que esta diferença de tempo só parece ser possível no caso de uma asssociada supranumerária que, por definição, não vive num centro, nem está sujeita a um apertado controle de actuação como por exemplo o das agregadas.

Por tudo o que expliquei no meu testemunho anterior, fui-me afastando dos centros e actividades da O. a pouco e pouco, na medida em que a minha vida real - família, trabalho, relações sociais - se passava à margem desse mundo fechado do O.D. com o qual eu apenas mantinha um contacto 'umbilical' através da conversa, da confissão, dos círculos e pouco mais.

Claro que durante todos esses anos senti muitas vezes que devia tomar a 'decisão' de ruptura. Mas queria fazê-lo sem sofrimento para mim e para os meus familiares e amigos que colocavam a O. acima de tudo na vida... Esse era o meu dilema. Como ser coerente sem magoar ninguém, incluindo a última directora com quem fiz a conversa vários anos e que sempre tivera muita paciência comigo.

Ao mesmo tempo, vivi vários anos num grau de cansaço extremo; aqueles em que os meus filhos eram muito pequenos e, ao mesmo tempo, eu realizava tarefas profissionais exigentes; a correria em que vivia, o 'stress' que sentia, etc. impediam-me de encarar a minha vida com suficiente lucidez. Lembro-me de pedir frequentemente a Deus que me desse forças para aguentar tanto esforço e luz para tomar a decisão mais coerente em relação ao O.D., do qual eu já me sentia 'de fora' no mais íntimo de mim mesma.

Dentro e fora ao mesmo tempo

Como é que se pode continuar a pertencer à O. e a sentir-se fora dela durante quase uma década?

Bem, é possível na medida em que, por um lado, procurava viver a minha vida com profundo espírito cristão, mas, por outro lado, estava tão absorvida pelas exigências das crianças e do meu trabalho que mal passava pelo centro.

Na verdade, as directoras foram quase sempre muito compreensivas quanto a essa situação que, aliás, não era nada original. Dezenas de outras supranumerárias do meu país viviam (e vivem) da mesma forma.

A grande diferença passava-se dentro de mim: sentia-me cada vez mais 'desligada' dos objectivos 'opusdeicos': encher retiros, fazer convites para a novena da Imaculada Conceição, preparar a tertúlia do Padre… O que era um alívio, porque - como interiormente me 'rebelava' com a forma e o conteúdo dessas actividades - não tinha que viver em permanente contradição.

Apesar de tudo…

Apesar de tudo, claro que sentia alguma contradição interior. Sentia, sobretudo, que tinha de tomar 'a decisão'; mas de forma alguma tinha forças para 'lutar' contra a frente cerrada das numerárias unidas contra mim. E sem dúvida que seria isso o que se teria passado se eu não tivesse deixado a minha ligação ao O.D. 'cair por desgaste'.

O que me sucedeu não obedeu a qualquer estratégia pensada previamente. Longe disso: eu vivia nessa aflição permanente de que um dia me iriam mandar fazer algo que eu teria, em consciência, de recusar, e então ficaria sujeita a uma 'fúria monumental'.

Na minha vida a O. tinha um lugar ambivalente:

  1. Era um bom apoio para as preocupações familiares, sobretudo porque na conversa podia desabafar acerca dos problemas que me afligiam: a relação com o meu marido nos primeiros anos de casamento; o nascimento dos filhos; as dificuldades com o trabalho; etc
  1. Era uma séria fonte de complicações com todas aquelas exigências absurdas de convites para amigas, de insistância para ir a actividades… e sobretudo de insistência de donativos em dinheiro!

Enquanto supranumerária jovem e solteira

Quando na O. se diz que 'os supranumerários não sabem quase nada do que se passa…', isto é em grande parte verdade… mas não para os supranumerários 'jovens e solteiros'. A estes e estas, a O. pretender 'formatá-los' intensamente de forma a que no futuro sejam bases de apoio no trabalho de S. Gabriel (se possível zeladores). Nos meios de formação ouvimos dizer isto muitas vezes.

Por isso, para quem 'se deixar levar facilmente', a sua vida será rapidamente integrada na famosa 'bolha de cristal' típica dos numerários e agregados. E por esta via se formam muitos supranumerários completamente 'fanáticos', especialmente se se vierem a casar com alguém que seja também da O.

Antes de ser supranumerária

Reconheço que o relato da minha ligação à O., escrito do fim para o princípio, não é propriamente 'dramático' ou sequer 'entusiasmante'.

Mas, andando para trás no tempo, estamos a chegar aos meus dezoito anos, idade com a qual fiz a oblação como supranumerária, depois de uma 'tensão' de mais de dois anos por me recusar a fazê-la como numerária!

Como foi isso possível? Naturalmente porque, tendo pedido a admissão com catorze anos e meio, não sabendo quase nada do que era a 'vocação' da O., escrevi na carta ao Prelado aquilo que me disseram: "peço a admissão como associada numerária".

Não sei explicar como foi possível que - tendo enfrentado tantas resistências - tivesse acabado por conseguir que as directoras 'concedessem' que fizesse a oblação como supranumerária. Como agora vejo claramente a sorte que tive em 'escapar' a um destino certo de tristeza e infelicidade!

Deveu-se a um misto de sorte com algum 'discernimento' que fui mantendo, apesar da enorme pressão a que fui sujeita para me manter sossegada no lugar que para mim tinham escolhido.

Salva pelos 'votos'

Na verdade, tendo apitado como numerária e feito a admissão também como numerária, vivi algum tempo na doce ilusão de que o meu destino estava traçado… Tal como as coisas tinham tido início, sentia-me simultanemanete contente e temerosa porque não percebia bem o que tinha decidido…

Até que me enviaram para um 'curso annual' a sério e então pude aperceber-me naquilo em que me 'metera'. Lembro-me perfeitamente das coisas que mais me chocaram:

-As cartas da minha mãe abertas antes de eu as ler!
-Os duches gelados pela manhã
-As ditas 'correcções fraternas' por motivos minúsculos
-Os tempos de silêncio forçado entre raparigas cheias de vida e energia
-Os fatos de banho ridículos usados na piscina pelas numerárias mais velhas
-As aulas doutrinais em que mal se podia abrir a boca para fazer uma pergunta

E, sobretudo, a sensação de estrar presa dentro de uma gaiola; a gaiola era dourada, é certo, mas não deixávamos de estar presas!

Até que um dia, numa sessão se formação, nos explicaram que (ao contrário do que sempre nos tinham dito) afinal sempre teríamos que 'fazer votos de pobreza, castidade e obediência' no momento da oblação enquanto assim a Igreja o exigisse! Senti uma revolta tão grande que por pouco não saí a correr da sala onde nos encontrávamos ou até da casa de convívios. E durante o resto do tempo não pensei em mais nada: "Mentiram-me! Mentiram-me! Mentiram-me!" E senti uma força inabalável nos meus dezasseis anos: nunca, em hipótese alguma, eu iria fazer tais votos de pobreza, castidade e obediência enquanto numerária. E não só porque não queria ser freira; antes e sobretudo, porque sabia que não seria capaz de os cumprir! Falava com Deus e dizia-lhe: "Senhor que conheces o meu íntimo melhor do que eu mesma, sabes bem que nunca poderei comprometer-me solenemente diante de ti a fazer aquilo que é incompatível com a minha maneira de ser! Senhor, bem sabes que eu me apaixono por um rapaz simpático à primeira vista; como posso comprometer-me a 'dar-Te' o meu coração por inteiro, quando eu não o consigo controlar?!"

É certo que tinha pedido a admissão como numerária; mas mal tinha percebido as consequências dessa designação… e à medida que tomava consciência do que aquilo significava, também via que, à minha volta, muitas das que tinham pedido a admissão tal como eu, passavam rapidamente ao estatuto de supranumerárias. E da diferença eu só retirava uma coisa, mas era o essencial: as supranumerárias podiam dar-se com rapazes, namorar e constituir família.

Por isso, antes de terminado o terrível 'curso annual' decidi com toda as forças que tinha perante a 'temível' pressão que enfrentava: só poderei ser da O. enquanto supranumerária, senão acabarei por fazer algo de terrível, violar uma promessa feita a Deus!

Por iso, 'fui salva pelos votos'!!!

'Pescada pela cabeça' e pela (ao menos aparente) amizade

Como pôde suceder que uma adolescente como eu, tão convencida de si própria e das suas capacidades, fosse 'pescada' em poucos meses (ou até semanas)?

Usaram a 'artilharia' do costume e de uma só vez:

-Acolhimento fantástico no clube de adolescentes
-Numerária minha amiga desvelando-se em atenções para comigo
-Convites especiais para tudo e mais alguma coisa
-Ida a Roma na Páscoa (e mais 'artelharia' pesada)
-Conversas 'concertadas' com o sacerdote na direcção espiritual
-Incentivo dos meus interesses intelectuais através de empréstimo de livros, conversas, idas a conferências

E depois, 'vocação', 'vocação', 'vocação'!

E eu dizendo que era muito cedo, que tinha de conversar com os meus pais, que não sabia bem o que Deus queria de mim, que tinha de fazer as coisas com calma…

E no dia seguinte, mais um telefonema; e uma conversa de uma das minha melhores amigas dizendo que ela já tinha 'apitado' e que esperava por mim; e uma meditação sobre generosidade de coração…

E no fim de semana, o segundo (ou terceiro) retiro do ano, ouvindo quase sempre a mesma coisa…

E na semana seguinte, um círculo dado pela numerária minha amiga, no final do qual ela tinha lágrimas nos olhos; e outra pronta a explicar-me que se devia à minha 'resistência à vontade de Deus'!!!

E mais uma conversa de duas horas com a mesma numerária a quem eu admirava acima de tudo e que refutava um a um todos os meus argumentos de sensatez; e contra-argumentava com ideias espantosas: se eu pedisse a admissão muitas outras seguiriam o meu exemplo; eu seria a nº X da região e daria uma alegria imensa ao Padre a quem a notícia seria dada; os meus pais seriam abençoados tal como o nosso fundador tinha prometido… Mais insistência! E eu por dentro a pensar: como posso ser tão ingénua e estar prestes a decidir assim coisas tão importantes, só porque outra pessoa quer, sem que eu tenha 'sentido' qualquer chamamento especial, sem falar antes com os meus pais que são cristãos maravilhosos e que tão bem me conhecem…

Lembro-me do dia, do local e da hora: por dentro a dizer que não; por fora a ouvir a minha voz como se não fosse minha: "Está bem, então escrevo a tal carta!" E uma sensação de alívio interior: agora já está; vão deixar de me pressionar por todos os lados.

Combinou-se que voltaria ao centro daí a dois dias, festa super-A; então escreveria 'a' carta! Vivi essas quarenta e oito horas como que num limbo, pensando que não podia voltar atrás, mas que certamente toda a gente estaria a 'ver-me à transparência' e saberia o que eu tencionava fazer: algo que muito me perturbava, que eu intuía como sendo algo tão sério… que se eu perguntasse a outro adulto que não fosse da O. poderia haver uma consequência terrível. Quem sabe se me prendiam… em casa ou em alguma instituição de menores por estar a desobedecer aos pais.

O dia fatídico

Cheia de temor, até mesmo de medo, dirigi-me ao centro e fiz tal e qual aquilo que me mandaram, como um autómato. Levaram-me para a meditação; e à saída dezenas de pessoas - muitas das quais inteiramente desconhecidas - abraçaram-me, felicitaram-me e dizeram-me que tinham rezado para que eu desse aquele passo. Na tertúlia, senti-me como 'o novo brinquedo' da casa, uma espécie de ursinho de peluche côr de rosa.

A pouco e pouco, o medo foi passando. Esses primeiros meses foram vividos com a sensação de 'pertencer a um clube secreto' do género dos que apareciam nos livros de aventuras da Enid Blyton (agora seriam os livros do Harry Potter!). Tudo era novo e excitante: tínhamos uma senha se comunicação (pax); reuniões semi-clandestinas; canções que mais ninguém sabia; notícias 'secretas' de Roma e de outras partes do mundo… As recém-apitadas éramos todas menores de idade, mas iríamos reconquistar o mundo, torná-lo melhor, entregá-lo a Deus!

E volto a ler as palavras de D. Álvaro e do Fundador da O.:

¡Qué trágica mentira cuando la infidelidad se pretende camuflar bajo apariencia de amor! Judas traicionó al Señor por dinero, Demás abandonó a San Pablo por los placeres de esta vida...: en el fondo, siempre es el egoísmo, la soberbia, es el yo desorbitado el que impide la fidelidad. Para nosotros, la fidelidad a nuestra llamada significa fidelidad a la vocación cristiana: al Amor de Dios. Se entienden por eso las palabras fuertes de nuestro Padre: si alguno de mis hijos se abandona y deja de guerrear, o vuelve la espalda, que sepa que nos hace traición a todos: a Jesucristo, a la Iglesia, a sus hermanos en la Obra, a todas las almas. Carta de D. Alvaro, marzo 1992, páginas 68-69]

E sinto como o 'absurdo dos absurdos' que porventura se possam estar a referir a mim e às demais, adolescentes de catorze e quinze anos, que, por essa altura ainda passávamos os tempos livres a 'saltar à corda'!!!

E choro por mim; e por todas aquelas que foram 'apanhadas' na armadilha que a O. engendrou e que não tiveram a sorte que eu tive.

E agora que já adulta, já mãe, continuo a seguir e a amar Jesus Cristo com todo o meu coração, peço-Lhe que me ajude a tudo fazer para que nunca mais em Seu nome se possam repetir tais crimes!


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