Depoimento de E. R. - ex-numerária

Há cinco anos eu deixei o Opus Dei, onde exerci a função de numerária adjunta. Aparentemente, sobretudo para a minha família, eu já superei todos os meus traumas. Mas ontem, enquanto eu lia os depoimentos dos outros amigos que viveram a mesma experiência que eu, percebi que a dor de ter passado por esta seita continua viva em meu coração. Senti que deveria compartilhar com vocês a minha experiência, pois sabemos o quanto é difícil sofrer sozinho...

Fiquei admirada e orgulhosa com as pessoas que, movidas pela coragem, expuseram suas histórias e se apresentaram com seus verdadeiros nomes. Não será o meu caso. Tenho receio de me expor por enquanto, portanto, quero somente contar algumas coisas que vivi, sem seguir uma linha cronológica, com o objetivo de contribuir com o esclarecimento de algumas dúvidas de pais angustiados, meninos e meninas de São Rafael cheios de indagações e numerários, que podem ter a sorte de conseguir acessar esta site e ler tantos depoimentos sinceros.

Não apitei (código interno, significa ser admitido pelo Opus Dei) por ser rica, como ocorre na maioria dos casos. Muito pelo contrário, meu ingresso na Obra se deu justamente quando a minha família vivia a maior crise econômica de nossas vidas. Neste tempo, meu pai estava em depressão, sem trabalho, enquanto minha mãe trabalhava em jornada dupla, ficando extremamente estressada e cansada com aquela situação. O clima lá em casa era horrível. Foi neste contexto que eu conheci o Opus Dei.

Lá dentro daquela outra casa, um centro da Obra, o clima era o oposto ao da minha. As pessoas eram felizes (hoje sabemos bem que não são tão felizes assim...), sorriam o tempo todo, havia ali um clima sedutor de paz e alegria que me conquistou a primeira vista. Isso, claro, porque eu também agradei bastante, e tão logo, o atendimento à minha pessoa foi excepcional. Era tudo o que eu precisava. Hoje, analisando a minha postura diante dos acontecimentos, entendo que a minha "vocação" pode ter sido, na verdade, uma fuga da realidade, naquele momento nada agradável da minha vida.

Acredito muito nesta questão de fuga da realidade e os pais aflitos que hoje tentam entender por que isto está acontecendo com seus filhos devem estar atentos a isso. Não sou psicóloga e nem pretendo realizar uma análise profunda sobre isso, estou apenas falando por mim. São tantas as razões que nós jovens encontramos para entrar para uma seita como esta...Em primeiro lugar por que eles provocam "vocações" em adolescentes de 14 anos, que estão em plena crise de afirmação de identidade. Qualquer um, com um pouquinho mais de atribulações pode ser "pescado". No meu caso, foi uma crise familiar, em outros casos, pode ser um jovem que não se dá bem com o pai ou com a mãe querendo se esconder ou mesmo chamar a atenção destes indo para a Obra. Todos temos problemas, os pais não devem se sentir culpados. Mas é que no Opus Dei, o mundo é apresentado de uma forma tão negativa que a vida lá dentro acaba sendo a única "saída".

Que fique claro porém, que não são só estas razões que fazem alguém se entregar a Obra. Pode ser um sentimento de compaixão com o próximo, que é despertado no começo, por meio de promoções sociais entre os meninos de São Rafael e as comunidades carentes, (que gente nunca mais vê depois que apita). Os jovens são muito idealistas e realmente acreditam que o mundo pode ser melhor. Outros motivos existem, cada um pode imaginar vários deles.

Sei de muitas pessoas que afirmavam ter vocação, mas nunca lhe deram ouvidos, pois não eram interessantes para o Opus Dei, ou por não terem muito dinheiro, ou por possuírem má aparência, etc. Nunca vi uma numerária com deficiência física, com deformidades estéticas, não havia nenhuma numerária feia... Lembro bem de uma pessoa que vivia atrás de uma diretora, dizendo que queria entrar para a Obra, mas esta era direta: "você não tem vocação". Hoje eu ainda converso com ela e a faço lembrar da enorme sorte que teve por não cair nas graças daquela diretora!

Bem, vocês podem estão pensar: ela teve afinidade pelas pessoas de lá por uma tentativa de fuga da sua realidade, mas por que houve reciprocidade se ela não tinha boas condições financeiras? A resposta é simples. Tenho o perfil desejado pela Obra. Sou muito comunicativa. Converso com todo mundo, tenho facilidade para fazer amizades e estou sempre alegre, "pra cima". Além disso, algumas outras características são importantes, como a educação, boa aparência e um certo nível cultural. Em resumo, tenho o que eles chamam de "cara boa"; em outras palavras, meu perfil é útil para o proselitismo. As pessoas que ainda estão na Obra e outras com mais sorte, como eu, que conseguiram se libertar, possuímos o que Escrivá definia ser uma "estrela na testa" ( a tal da vocação...). A minha diretora dizia que como ela estava acostumada a lidar com isso, "enxergava" esta estrela rapidamente. Mas claro que esta é uma forma de seleção de seres humanos que mal entram pelas portas dos centros já estão sendo avaliados e escolhidos para o serviço da instituição devido a sua posição social, status, nível cultural, aparência, etc.

Se você tem um filho freqüentando um centro da Obra, tome já uma providência, pois está nas suas mãos, principalmente. Não estou fazendo terrorismo, mas há pais que esperam demais, ou que se omitem. Analisem se seus filhos possuem condições de dialogar com vocês, conversem, perguntem. Se começarem a mentir, é um mau sinal. Eu mentia muito, pois quando meus pais começaram a se opor a minha mudança de comportamento, absolutamente visível, eu não tinha alternativa, senão mentir, mentir, mentir.

Um dia, escutem essa, eu falei para a minha diretora que meus pais eram contra eu freqüentar a Obra (nesta época eu estava quase apitando) e que eu não estava à vontade com esta situação. Sabem o que ela disse? " Maria, quando recebeu o chamado de Deus para conceber Seu filho, também sofreu com a oposição dos pais (Evangelho segundo o Opus Dei, diga-se) e por isso, ela teve que ir contra às ordens deles. Teve que mentir também, fazer o quê" - dizia ela – "o que é mais importante, a vontade de seus pais ou a de Deus?". Muito cuidado, pois eles possuem uma capacidade incrível de fazer releituras do Evangelho!!! E essas alturas, nosso poder de crítica inexiste, praticamente.

Meu conselho para os pais de jovens que acabaram de conhecer um centro da Obra é que expliquem bem a situação a eles e não permitam mais que freqüentem nenhum tipo de evento. Nem palestras, nem retiros, por mais interessante que pareça para sua formação, nem passeios, nem visitas à pobres, nada, pois estes são os primeiros passos, muito bem pensados.

Porém, não proíba freqüentar os centros quando eles já estão demasiadamente envolvidos, isso pode ser um motivo e tanto para seus filhos se sentirem verdadeiros mártires, pois estarão lutando contra os pais que não estão permitindo que eles estejam com Deus. Permita, mas dificulte. Não dê dinheiro para a Obra, jamais. Não faça assinaturas, não compre livros e nem lembrancinhas do padre (gente, vocês viram que agora tem souvenir do padre pra vender no site dele?), isso pode comprometer seu filho ainda mais. Comece a controlar o dinheiro gasto pelo seu filho. A Obra se prende bastante nestas questões financeiras.

Meus pais não me davam dinheiro e eu tinha grandes dificuldades para ir ao centro. Claro que mesmo sem dinheiro eu ia, saía pela porta da frente do ônibus, pediria esmola se precisasse, mas isso cansa. Foi por isso que eu saí, porque eu me esgotei. Todo dia era uma luta, primeiro para convencer meus pais que eu tinha que ir ao centro diariamente, depois, para conseguir chegar lá sem dinheiro. Como eu faria para almoçar, sem grana, eu deixava para pensar depois. Logo que apitei eu emagreci 4 quilos, pois andava feito uma louca pela rua, da faculdade para o Centro, do Centro para a minha casa, sempre atrasada para os meus compromissos, sem comer, tensa, com uma culpa danada pelo que estava fazendo com meus pais...Vendo meus velhos amigos se afastarem, meus parentes me acusando de estar fanática, obcecada, de ser insensata.

Seu filho tem que fazer grandes sacrifícios para visitar o Centro. Não facilite, caso contrário você estará entregando-o de bandeja. Se meus pais me dessem mesada (ainda bem que estávamos em crise financeira!) eu não teria passado por metade das dificuldades que passei e talvez ainda estivesse lá.

Quando comecei minha vida de adjunta fazia pequenas críticas à Obra, questionava certas regras. Aí, minha diretora sempre tinha um discurso feito, com alguma citação do Evangelho que não me convencia...(como aquela historinha da família de Maria) Um dia a diretora começou a me falar sobre a Santa Inquisição de uma maneira muito positiva e até exaltada. Fiquei impressionada com aquilo passando a questionar sozinha os discursos da minha própria diretora. Não concordava com a censura de certos livros que me impediam de estudar e tirar boas notas, com a forte influência que sofria na escolha do meu curso universitário, com a obrigação de realizar coisas que a minha condição financeira não permitia, com a maneira como me censuravam (correção fraterna) por cometer os erros mais inocentes, com o uso dos instrumentos de mortificação corporal, com o fato das residentes não dormirem em colchões, mas em tábuas de madeira, (isso era restrito às mulheres, por ordem do próprio Escrivá que as julgava muito sensuais - sem comentários) tomarem banhos frios, etc, etc, etc...

Se você é numerário (a), está lendo isso, por Deus, não deixe toda a sua alma nas mãos de seu diretor. É assim que ele te manipula. Deus não quer isso pra você, tenha certeza, pois a vocação verdadeira não deve precisar destas armadilhas. Você deveria estar aí por vontade própria e não por imposição. Dizem que para entrar na Obra é preciso esmurrar a porta, mas para sair ela está entreaberta. MENTIRA! Eu lutei muito para sair, fui perseguida, me torturaram psicologicamente, mas acreditem, sair da Obra "Vale la Pena!".

Vou contar como foi a minha saída, a melhor parte da história: Todos os dias eu brigava muito com meus pais para poder ir para o centro, e esta rotina de brigas e desavenças estavam me esgotando. Minha mãe chorava todo dia, (pensem, que remorso eu tenho hoje de lembrar destas coisas...).Eu passava o dia todo lá, cheia de tarefas absurdas para cumprir, além do plano de vida. Um dia, eu simplesmente entreguei os pontos: chega, eu falei. Isso foi durante uma discussão terrível com meus pais. Ficou um clima estranho na sala, meus pais me olhavam como se estivessem assistindo ao final de um filme de terror.

Fui caminhando para o meu quarto, pensando na decisão que havia tomado, sem antes ter sequer pensado em fazê-lo concretamente. Aí, o que eu fiz, só os ex-numerários vão me entender: Olhei para o sofá em frente à televisão e simplesmente me joguei sobre ele. Liguei a TV com o controle remoto e fiquei ali, em êxtase. Isso pra mim teve um significado de liberdade incrível, pois há muito tempo não me permitia tamanha audácia! Muitas coisas aconteceram depois disso, fatos que prefiro não relatar, mas que exigiram de mim uma força sobrenatural para que eu conseguisse persistir nesta minha decisão. Nunca me arrependi e hoje agradeço a Deus por esta força.

Algo interessante para os pais: as mudanças de comportamento. Olha, nós mudamos muito mesmo quando estamos envolvidos no centro, ou quando já apitamos. Minha mãe dizia que eu tinha mudado o olhar. Disse que eu estava com o olhar seco, morto. A Obra incentiva o afastamento da família, então, observe se seu filho está desinteressado com as coisas de casa, se não "perde mais tempo" com vocês. As roupas também mudam. De um dia para o outro passam a se vestir de outra maneira, as meninas depois que apitam aparecem às vezes de saias longas. Eu passei a me vestir diferente, a rir diferente.

Muitos pais estranham, ficam preocupados, mas esperam para ver o que fazer. Não esperem. Vão ao centro, conversem com o diretor, com o sacerdote do centro, perguntem mesmo, tudo. Peçam para conhecerem o andar de cima, exclusivo para os residentes, mas "de surpresa", pois as camas de tábua podem ser fantasiadas com colchões caso saibam de antemão desta sua vontade. (vi isso acontecer muitas vezes). Leiam outros livros sobre a Obra, que não sejam exatamente os vendidos pela Obra...temos que conhecer a opinião de outras pessoas, recomendo o livro da Maria Del Carmem Tapia, que me ajudou muito, além de outros que vocês podem encontrar no site www.opuslibros.com, alguns vocês podem ler na própria página. Leiam o site todo inclusive, há nele boas discussões.

Um dia, numa Sexta - Feira da Paixão, estava eu no centro, de jejum. Eu tenho muita dificuldade com esta coisa de ficar sem comer por muito tempo porque começo a tremer! Aí, bem neste dia, do JEJUM, me incumbiram de limpar o chão de uma área enorme no centro. Não era passar um pano, não. Era passar solvente e descolar um produto que estava no taco, com o auxílio de uma faca. Imaginem, fome, solvente, agachada e voltada para o chão. Me deu uma forte tontura e quase desmaiei. Com fome, não havia como executar a aquela tarefa, ainda mais sozinha.

Perto dali, no mesmo espaço em que eu estava, havia uma geladeira. Sem pensar, abri a porta e peguei um pacote de biscoito. Comi um. Coloquei-o inteiro na boca e engoli com pressa, morrendo de medo que alguém visse, afinal, aquilo era um pecado! Depois de engolido, veio a culpa. Depois da culpa veio o medo de haver ali uma câmera me filmando cometendo um grande delito. Até que grau chega o medo. Nem tive coragem de confessar este "pecado".

Os piores momentos eram quando eu me via entre a ordem da minha diretora e a ordem dos meus pais, que para mim, eram sempre mais importantes. Ao mesmo tempo, dado a minha condição de membro do Opus Dei, deveria obedecer somente a diretora. Então aí é que eu pirava. Tinha que contornar a situação, inventava uma mentira em casa, dava uma desculpa no centro...Olhar para a minha mãe e ver a expressão de tristeza no seu olhar é algo que eu nunca vou esquecer. Eu pergunto a você, leitor deste depoimento: é de Deus fazer a mãe da gente sofrer tanto? Como será que Deus se sente quando vê uma menina de apenas quinze anos usando um silício na perna e se chicoteando com uma disciplina enquanto reza pra Ele? Desculpem, mas o Deus que eu conheço, com quem falo diariamente e confio a minha vida não pode ser tão sádico...Deus é do bem, gente!

Para finalizar, gostaria de lembrar o que a minha diretora me falou uma vez, durante o meu processo de saída da Obra. Ela disse olhando nos meus olhos, que eu ia me arrepender muito de ter saído, quando tivesse ao meu lado, um marido que me batesse. Muitas outras "profecias" são ditas, tem aquela famosa da numerária que fugiu com um homem e o avião em que estavam caiu. (!!!). Isso mostra bem o terrorismo que fazem com a gente e a visão cruel que eles têm da vida. Imaginem o que a minha diretora pensa do casamento...Sou muito feliz, tenho minha alma tranqüila, rezo para Deus todos os dias e agradeço por ter me tirado dessa.

Se alguém quiser entrar em contato comigo, por favor, peça meu e mail para o Mariano.

Um grande abraço, E.R.