Opus Dei no Brasil: História de uma Camuflagem

Para um universitário brasileiro na década de 60, o Opus Dei — mesmo ainda tão incipiente, ou talvez até por isso mesmo — surgia como o portador de uma grande e saborosa novidade.

Esta novidade que o Opus Dei trazia contrastava com um catolicismo que, no Brasil, tinha, em geral, um aspecto um tanto ou quanto esquisito, afetado. Afetada era a pregação. Afetadas as devoções. As imagens dos santos, por exemplo, costumavam ser insuperavelmente kitsch, como as de Santo Expedito e São Jorge (que nem é santo).

A profundidade da inteligência entre os católicos daquela época também não era o forte da pregação: o clero, recrutado sobretudo em meios rurais, não era, nos seminários de então, formado propriamente por intelectuais. Era comum que a mesma afetação das devoções se transpusesse para a pregação e até para o tom de voz — meio afeminado — de muitos dos pregadores...

Era também o tempo dos colégios de padres, só para meninos, onde a religião apresentava-se como algo obrigatório e baseado no temor de um Deus que vigiava e castigava com as chamas do inferno etc. Para não falar dos temíveis colégios internos de religiosos, com que os pais ameaçavam os filhos rebeldes...

Por caricaturesco que possa parecer hoje, essa era a realidade de boa parte do catolicismo brasileiro à época do Concílio Vaticano II. Mas havia um outro tipo de catolicismo, engajado nas questões políticas e sociais, na luta contra a ditadura militar, o catolicismo chamado “de esquerda”.

O jovem universitário daquele período, para quem o catolicismo tradicional parecia repugnante e que não julgasse necessário comprometer-se com a Igreja para combater a ditadura, a religião aparecia como uma realidade dispensável. Por isso, a partir da adolescência, já não encontrava razões para ir à missa, confessar-se, rezar etc.

O mundo, e também o Brasil, vivia uma época de crise religiosa e do clero. E não havia ainda — ou eram muito incipientes — os diversos movimentos que existem hoje na Igreja. Nesse contexto, entre o catolicismo xarope e o catolicismo dos “padres de passeata”, como dizia Nelson Rodrigues, o contato com os centros do Opus Dei em São Paulo (até 1975, a única cidade na qual a Obra estava presente *) era o encontro com um catolicismo totalmente diferente e muito atraente. Um catolicismo praticado de modo sério, coerente e alegre, por universitários sem a menor sombra daquela afetação, mais preocupados com o estudo do que com a política.

Em geral, as pessoas eram “recrutadas” para ir a esses centros não para participarem de atividades religiosas. Havia eventos e cursos de interesse estudantil. Ia-se em busca de técnicas de estudo, ensinava-se a usar a régua de cálculo, os colegiais (os que freqüentavam o ensino médio da época) recebiam orientação profissional; e organizavam-se partidas de futebol, excursões ou festivais de música.

Vale ressaltar que, naquele tempo, ao contrário do que ocorre hoje, não havia a oferta de cursos e atividades extra-curriculares por parte das escolas, academias e instituições particulares e públicas com a profusão de hoje. Os centros da Obra surgiam como centros culturais, como uma empolgante proposta de aperfeiçoamento humano e intelectual.

Aproximadamente metade das dezenas de jovens que freqüentavam os Centros em São Paulo era composta por universitários, sobretudo da USP; a outra metade, por colegiais. Só depois de participar desse lado acadêmico ou esportivo do Centro e de receber a simpatia e a amizade dos numerários, a pessoa era convidada para a meditação semanal: uma palestra de meia hora ministrada pelo sacerdote, no oratório do Centro.

Os sacerdotes — como Pe. Rafael Llano, Pe. Manuel Correa ou Pe. Alípio Maia e Castro — eram figuras cativantes: todos tinham um curso universitário leigo além de um doutorado em ciências eclesiásticas. Nada daquela afetação dos padres da época, nada do desprepraro intelectual, nada de preocupações ideológicas que colocassem a religião em segundo plano. Pregavam o Evangelho com linguagem apropriada para um universitário. E havia também os círculos, palestras dadas pelos numerários eram num tom novo e atraente. Naquela época, era uma imensa novidade a “pregação” realizada por leigos. Um verdadeiro avanço em termos de atuação apostólica.

A mensagem transmitida com vibração era a da santidade no meio do mundo, um cristianismo pleno, arrojado, a vocação de leigos, o amor apaixonado ao mundo, à liberdade. Essa mensagem concretizava-se na vida de entrega daqueles numerários que moravam, como uma família, e tinham como missão na vida ser uma injeção intravenosa na sociedade, para renová-la, colocando Deus no cume de todas as atividades humanas.

Os universitários que tinham contato com essa realidade iam se envolvendo aos poucos e, um belo dia, provocava-se nele, numa conversa com um numerário, a “crise da vocação”. A vocação costumava ser proposta de um modo agressivo. O numerário encarregado de “tratar” o freqüentador, em conversa pessoal com este, propunha-lhe, ou melhor, impunha-lhe (da parte de Deus), a necessidade de entregar-se totalmente a Deus como numerário no Opus Dei.

Esta entrega implicava um compromisso de entrega total. Não se casar para dedicar-se totalmente a “fazer a Obra”, entregar todo o dinheiro que ganhasse e viesse a ganhar para “fazer a Obra”, morar num centro da Obra, obedecer com generosidade, e estar pronto para qualquer mudança de cidade ou de país para “fazer a Obra”. E como se tratava de um chamado de Deus, qualquer recusa ou atraso implicava numa grave frustração dos planos que Deus tinha para aquele freqüentador. Naturalmente, ante a dúvida, era-lhe proposto que falasse do assunto com o sacerdote do Centro, na conversa semanal de direção espiritual que o freqüentador tinha com o padre. E o padre confirmava da parte de Deus que ele tinha vocação e que não teria paz nem felicidade, nem nesta vida e muito menos na outra, enquanto não “apitasse” (no jargão da Obra “apitar” é ingressar na instituição).

Quando o freqüentador (e o mesmo acontecia com as freqüentadoras da seção feminina) acabava concordando, após a terrível pressão de consciência, que incluía a proibição de comentar a “proposta” com quer que fosse, especialmente com sua família “de sangue”, passava a integrar aquele grupo seleto de gente comprometida com Jesus Cristo, e passava também a conhecer melhor a realidade da Obra, a viver plenamente sua agenda espiritual: missa diária, uma hora de oração mental todos os dias, o terço, leituras espirituais, prática da presença de Deus, círculo breve, Preces (oração própria dos membros da Obra), retiro, recolhimentos internos, curso anual...

Pouco a pouco, ia se dando conta de outras exigências da “vocação”: não podia ir a cinemas nem a espetáculos públicos, não podia ter amizade com moças, nem amizades femininas em geral, deixava de comparecer a eventos familiares, jamais poderia ser padrinho de batismo dos filhos de amigos ou parentes etc. Na prática, todos os seus contatos e amizades deveriam ser transformados em rendimentos para o Opus Dei, em termos de proselitismo (conseguir novos adeptos), ou em dinheiro para as campanhas econômicas da Obra.

No Opus Dei, está proibido fazer qualquer crítica à atuação estabelecida pelo fundador, Josemaría Escrivá, ou aos diretores mais próximos. Qualquer observação deve ser feita na conversa semanal com o diretor leigo, na qual cada membro fala de sua oração e de seu apostolado, de seus pecados e tentações, e de como emprega seu tempo para “fazer a Obra”.

Naqueles começos, porém, no início da década de 60 e até a primeira metade da década de 70, essas exigências eram vistas como necessárias para “fazer a Obra”, e tinha-se a impressão de que a Obra estava se fazendo e era de Deus: havia muitas atividades e muitas vocações (embora muitos “desapitassem”), vivia-se uma relativa liberdade (em termos comparativos, com o que viria a acontecer depois, a partir de meados dos anos 70), sentia-se o entusiasmo de buscar a santidade, de ter sido escolhido por Deus para uma tarefa empolgante e transformadora.

A partir de meados dos anos 70 e até hoje, muitos começaram a perceber uma progressiva transformação interna do Opus Dei. Ou era a camuflagem que se desfazia, e a verdadeira face da instituição surgia diante de nós? Daquele ímpeto apostólico dos anos 60 passou-se a uma gradual transformação do numerário num simples burocrata.

Contribuíram para isso o próprio crescimento (e institucionalização) da Obra, a expansão para outras cidades, a fundação do Centro de Estudos (em 1972, uma espécie de escola de cadetes de numerários), o crescente temor do mundo, a incapacidade de lidar com as críticas ao Opus Dei feita nas melhores universidades etc.

Aquele primeiro Opus Dei que tanto nos atraía, por trás de sua crosta de modernidade e arrojo, era, na verdade, a melhor fórmula encontrada pelo fundador espanhol para uma sociedade (e uma Igreja) pré-Vaticano II: uma Igreja de séculos de retranca (da Contra-Reforma, da Contra-Revolução, do contra...), uma Igreja incerta a respeito das respostas apropriadas que deveria dar a um mundo desejoso de pluralismo e de tolerância.

Esta resposta veio com o Concílio de João XXIII. Contudo, como dizia o fundador, a Obra já estava “esculpida”, e pouco tinha a aprender com o Concílio. Era e é cada vez mais evidente que o Opus Dei sente imensas dificuldades em dialogar com um mundo no qual, pretensamente, estaria inserido. Daí que, na prática, os numerários vivam hoje uma vida quase conventual. Para poderem, por exemplo, jantar fora das casas da Obra, ou sair à noite, necessitam da aprovação dos superiores em cada caso concreto. Só podem assistir a filmes em vídeo uma vez por mês e em versões previamente censuradas, editadas e aprovadas pelos superiores. A internet é encarada como um “mal necessário”. Enfim, o numerário, aquele que deveria ser o primeiro a concretizar a imagem do “santo moderno”, vive a sua vidinha quase monástica. Embora não faça votos, vive a castidade, a pobreza e a obediência como fins em si mesmos.

Assim, daquele impulso dos começos, muito pouco resta. A presença do Opus Dei em universidades como a USP ou a UFRJ é praticamente nula, quando o “antigo” ideal era transformar o mundo por meio de “uma aristocracia da inteligência”, como repetia Escrivá. A partir de 1974, começaram sérias restrições às leituras (há um imenso Index de livros proibidos internamente), o que impossibilita um amadurecimento intelectual em diálogo com o pensamento contemporâneo. Hoje, poucos universitários freqüentam os Centros. Os numerários procedem de clubinhos de crianças anexos aos Centros (em geral, freqüentados por filhos de supernumerários ou de cooperadores), e ao completarem 14 anos e meio entram para a Obra.

Burocratas sem iniciativas, engessados, autômatos. O que se espera de um membro da Obra hoje é que cumpra sua quota de obtenção de doações em dinheiro para a Obra (como os doadores confiam na Obra, não questionam para onde vai esse dinheiro, uma vez que, em São Paulo, há anos, a Obra não realiza nada de novo), sua quota de vendas de assinaturas do Círculo de Leitura da Editora Quadrante e um pouco mais...

Mesmo aquele “clericalismo” tão combatido pelo Opus Dei daqueles tempos começa a ser praticado pelo “novo” Opus Dei. É freqüente ver, na programação da Rede Vida, membros da Obra dando “palestras”, algo inimaginável no Opus Dei originário, que inclusive ridicularizava iniciativas como a de uma TV católica.

O Opus Dei, no entanto, continua apresentando a sua velha camuflagem quando inicia seu trabalho numa nova cidade. Uma imagem de liberdade e vigor, através da exposição de alguns (poucos) de seus membros mais brilhantes (essa restrita minoria, sim, goza de alguma liberdade), como o jornalista Carlos Alberto Di Franco, ou o bispo D. Rafael Llano Cifuentes, ou o empresário Guilherme Döring da Cunha Pereira (herdeiro de um dos mais importantes grupos de imprensa escrita e televisiva do sul do país), ou de jovens membros naturalmente simpáticos, que servem de “isca” para novos ingênuos. A realidade, porém, por trás de seus muros, é a de uma estrutura fortemente hierarquizada, uma alta incidência de doenças mentais, e uma crescente frustração de seus membros mais antigos, que viram a redução de seu sonho de juventude à observância minuciosa de um emaranhado de milhares de regrinhas e proibições que geram escrúpulos, culpas, medos...

Essas características ** configuram tipicamente uma seita; acontece, porém, e o Opus Dei sabe esgrimir isto eximiamente, que a Obra foi transformada em Prelazia Pessoal da Igreja, e recebe da hierarquia eclesiástica (ao contrário do que acontecia nas décadas de 40, 50) um apoio quase unânime. Daí a confiança impensada que tantos —dentro e fora do Opus Dei — depositam na instituição. Basta-lhes o aval eclesiástico, que, como tudo na vida da Obra, foi na verdade concedido para o aspecto externo, para os estatutos, para os papéis, para as imagens de marketing institucional (jovens felizes que aparecem cantando para o Sumo Pontífice e gritam “Viva el Papa”), para um que outro centro de assistência social para os pobres como cartão de visitas etc.

A realidade por trás dos bastidores é bem outra: burocratas, com medo do mundo e das autoridades da Obra, uma escola de egoísmo, soberba e frustração. E o que mais entristece nesse quadro é que os membros da Obra foram e são recrutados entre pessoas boas, generosas, dispostas a sacrificar-se para servir à Igreja, pessoas que, com o passar dos anos, em vez de percorrerem o caminho da vida de oração e ação que buscavam inicialmente, acabam se transformando nesses burocratas cinzas, sem outra habilidade que a técnica de falar de Deus... É o termo final de um processo, típico das seitas, de socialização / integração baseado numa lenta e progressiva despersonalização efetuada por meio da insegurança (moral, social, econômica, profissional, existencial, enfim) provocada deliberadamente pelos diretores nos membros.

Para o bom católico que se aproxima do Opus Dei (e vai aqui um alerta aos bons católicos de cidades como Bauru, Ribeirão Preto, Florianópolis, Recife...), a credibilidade da Obra é dada, em particular, pelo uso dos Sacramentos da Igreja, que, ninguém duvida, são administrados dentro da mais rigorosa ortodoxia pelos sacerdotes da instituição. Mas se tornam também outro aspecto da camuflagem. São instrumentalizados para o controle daqueles que deveriam recebê-los desinteressadamente. Ao contrário do que pode parecer nos primeiros contatos superficiais, no Opus Dei tudo exige uma contrapartida (inclusive as coisas mais santas) e a instituição é muito meticulosa em seus cálculos de custo/benefício. Quando perde o interesse “apostólico” por uma pessoa, no exato momento em que o “saldo” não é mais a seu favor, esquece este freqüentador ou este membro. Descarta-o como um peso morto. Por exemplo, dependerá muito desse “saldo” que um numerário consiga ou não (e com que prontidão) que um sacerdote da Obra administre os últimos sacramentos a um seu ente querido moribundo...

Todas essas considerações sobre a face externa de um Opus Dei aprovado pela Igreja, e a face interna, autoritária, mesquinha, oculta, experimentada na carne sobretudo pelos numerários, podem ser considerações escandalosas para quem acabou de conhecer a Obra, para quem lê os escritos do santo fundador, para quem assiste a uma missa celebrada piedosamente por um sacerdote da Obra...

Tal escândalo é o que levou e leva muitos membros da instituição (também supernumerários) a dela se desligarem, mesmo depois de muitos anos de vinculação e fidelidade. Ao sair do Opus Dei, o ex-membro enfrentará mil dificuldades, deverá reaprender a adaptar-se à realidade do mundo, a superar uma certa ojeriza às coisas da Igreja, mas, pelo menos, terá recuperado a oportunidade de ser o que é, e poderá estabelecer com Deus uma relação viva, não mais mediada, e deturpada, pelos propósitos inconfessáveis do Opus Dei.


(*) Desde o início da década de 60, quando a Obra chegou ao Brasil (São Paulo) e até 1968 havia um único centro, na Rua Gabriel dos Santos. Em 1968 essa casa foi substituída por dois centros: Pacaembu e Vila Mariana, seguida pelo de Pinheiros e o de Itaim. Hoje a Obra está presente em outros bairros paulistas, bem como em outras cidades como Campinas, São José dos Campos, Rio de Janeiro, Curitiba, Belo Horizonte e Porto Alegre. Nos atuais planos de expansão da instituição a idéia é “invadir” o interior de São Paulo, onde existem focos de catolicismo conservador.

(**) Junto com diversas outras que seria muito longo enumerar aqui: culto à personalidade do Prelado, ambigüidade em todas as diretrizes internas (o que permite o arbítrio dos chefes em cada caso concreto), a abdicação do pensamento, da criatividade e das iniciativas pessoais, sacrificadas a uma obediência cega e mecânica, as enormes dificuldades que uma pessoa sente quando deseja, por qualquer motivo, sair da instituição (todo o seu dinheiro foi entregue à Obra e ao longo de sua vida sacrificou amizades e até o contato com os familiares), sem falar da dominação de consciência que gera uma culpa terrível cada vez que um membro da Obra questiona a falta de sentido de sua vida.