O numerário hors-concours

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Este pequeno estudo tem por finalidade descrever o que seria o numerário perfeito, ou o numerário que não causa problemas ao opus dei e só traz benefícios à instituição. O numerário que vestiu a camisa. O numerário que faz da sua vida uma vida voltada para fazer o opus dei, sendo ele mesmo, de corpo e alma, opus dei. O numerário-padrão. O numerário hors-concours. O numerário identificado com a obra. O numerário que não entra em crise. O numerário que talvez exista. O numerário que obedece. O numerário que defende a obra até debaixo d’água. O numerário que todo numerário quis ser um dia.

O numerário-padrão (NP) é pontualíssimo em suas normas de piedade. Vive a virtude da ordem com um empenho impressionante. O NP não faz consultas desagradáveis ao diretor. O NP obedece a tudo. Tem de mudar de cidade? Muda de cidade sem causar problemas. Tem de deixar o emprego? Vai lá, pede demissão, na boa, sem “frescura”. Mandam que peça dinheiro para a obra? Consegue o dinheiro. Falam para ele dar palestras segundo os roteiros já estabelecidos? Suas palestras repetem, sem tirar nem pôr, tudo o que deve ser repetido. O NP não inventa, não tenta ser engraçado nem original. O NP cumpre o dever como o dever tem de ser cumprido.

O NP não se envolve com moças de forma alguma. Até esquece o nome delas. Elas são invisíveis para ele, e ele para elas. O NP guarda a vista e o coração num cofre. O NP está próximo da sua “família de sangue” se, quando e durante o tempo que a obra permite ou recomenda. E o NP não reclama jamais. Nada de nove-horas. Obedece com simplicidade, com objetividade, com rapidez. Se lhe dizem “não” então é “não”, e ponto final. Se lhe dizem que “sim”, é sim, e ponto final. Obedece sem discutir, sem pensar, pois sabe que “nos trabalhos de apostolado não há desobediência pequena” (Caminho, 614). E como o apostolado é a meta principal de sua vida (o seu celibato é apostólico, mora no centro por motivos apostólicos, está vinculado à Prelazia para fazer apostolado, reza para ser apóstolo, apitou para ser apóstolo, faz proselitismo para aumentar o exército de apóstolos do opus dei), tudo, direta ou indiretamente, desemboca no apostolado, e portanto tudo é matéria de obediência.

O NP sempre acredita nos diretores. E se os diretores erram, omnia in bonum. A obra é infalível, mesmo quando parece que erra. No final, o NP sempre se enterra e sempre cala, reza, sorri, e volta a trabalhar como se nada tivesse acontecido. O NP jamais precisará de um psicólogo, muito menos de um psiquiatra. Sua santidade é só o que interessa. E cumpre todos os seus encargos com precisão. Não se queixa. Não murmura. Está sempre pronto para mudar seus planos, se é que tem planos, além do plano de vida que a obra lhe deu. Seus planos são os da obra. Se alguém lhe diz que não deve manter amizade com determinado amigo, corta a amizade, esquece o amigo, e ponto final. Se a obra lhe diz que deve ficar na portaria, ele fica na portaria. Se a obra diz lhe que deve sair à rua para conhecer novos rapazes e trazer para conhecerem o centro, ele vai e traz gente. Se a obra lhe diz que não é para ver TV agora, ele não vê. Se a obra lhe diz que agora é hora de ver um filme (meio chato mas os da moda não passaram pela censura...), ele assiste sem reclamar. O NP não oferece obstáculos nem resistências.

O NP lê tudo o que o nosso Padre escreveu, e sempre consulta o diretor para saber se pode ler os livros “profanos” que porventura precise ler, se é que é importante ler algo mais do que o Evangelho, os livros do “nosso Padre”, de outros santos, e as publicações internas. O NP lê os livros do Círculo de Leitura todos e considera todos eles oportunos e bem escritos. O NP não se importa de pegar o jornal censurado pelo diretor. Se as páginas 5 e 6 do jornal desapareceram é porque ele não tinha que ler essas páginas. Página virada.

O NP toma banho frio sempre, não quer compensações de nenhum gênero, tem uma lista de mortificações implacáveis, usa o cilício e a disciplina sem “frescura”. O NP dorme no chão quando tem de dormir. O NP se deixa humilhar se for o caso. Tudo para ele está “estupendo”. Não está nem aí consigo mesmo. Se alguém lembrar dele, ótimo. E se ninguém lembrar, ótimo também. O NP está aqui para servir o cafezinho de seus irmãos no começo da tertúlia. O NP abdicou de qualquer ambição pessoal. Para ele não existem problemas pessoais, pois o único problema é ser opus dei, e isso ele é plenamente. Está tudo resolvido.

O NP vê que vários numerários deixam a obra. Reza por eles (se for o caso, no memento dos mortos, na Santa Missa...). Não quer aprofundar nos motivos que os levaram a sair. Eles certamente não conseguiram ser fiéis, ponto final. E omnia in bonum. Permanecem nos quadros da obra os que não querem ter direito a nada. Os que cantam que o único direito que têm é não possuir nenhum. É não serem nada, não poderem nada, não terem nada. O NP abdica da vontade própria. Permite que os diretores façam com ele o que bem desejarem, como o cordeiro mudo levado ao matadouro.

Pode parecer incrível, mas esse é o ideal de vida de um numerário quase... perfeito. E por que tantos que perseguiram esse ideal, e tudo levava a crer que conseguiriam alcançá-lo, não conseguiram, afinal, se na obra, como dizia o fundador, encontra-se toda a farmacopéia? Se a vocação é divina? Se cumprir as normas e ser sincero e obedecer calado resolve tudo?

A resposta oficial é que o numerário-padrão foi vencido pela soberba, ou pela impureza, ou pela vaidade, ou pela preguiça, ou pela “profissionalite”, ou pela “familiose”... É incrível como uma estátua pode quebrar-se depois de viver incólume durante tantos anos. É inacreditável como um robô pode dar defeito depois de tantos anos de serviço, e de missa diária, e de confissão semanal, e de tantas horas de palestras, e tantas horas de oração, e tantos terços, e tanta água benta, e tantas correções fraternas aceitas sem discutir, e tantos conselhos dos diretores, e tantos editoriais de Crónicas, e tantos recolhimentos e retiros, e tantas tertúlias do "nosso Padre", e tantas broncas edificantes, e tantos tanta coisa... Por isso o NP quebrado será infeliz fora da obra, e corre sérios riscos de ir para o inferno.

O NP ele mesmo, no dia em que “quebra”, não sabe o que fazer com a perfeição perdida. Descobre que era humano, e que alguma coisa de humano (e não de pecaminoso, é importante ressaltar), dentro de si, passa a pedir socorro, a pedir espaço, a pedir compreensão. Não se trata do demônio em busca do terreno perdido. É apenas uma pessoa humana que não suporta mais viver de modo artificial, dentro de uma redoma “cristã”, renunciando ao desejo de ser feliz.