Jamais eu tinha contado isso a alguém

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Pois então aí vai meu depoimento (loooonguíssimo!!):

Primeiro quero agradecer a todos os que tiveram a idéia de criar este site. Será que vocês têm a dimensão exata do bem que fazem a tantas almas por aí?

Falo por mim, mas tenho certeza de que muitas pessoas se beneficiam do conteúdo do Opus Livre.

Quero também parabenizar os autores do livro "Opus Dei, Os Bastidores" por tanta coragem e lucidez. A pertinência deste livro é imensa e, creio eu, ajuda a trazer paz a muita gente que passou pelo Opus Dei - meu caso.

Até ter conhecimento do livro e acesso ao site, o que só aconteceu há duas semanas, vivi anos da minha vida achando que eu era a única numerária dissidente, pois eu nunca havia lido nada tão real sobre o assunto por aí. Então só tenho mesmo a agradecer, porque senti um alívio imenso de ver que sou normal, ao contrário do que as pessoas do Opus Dei quiseram me fazer acreditar com suas normas insanas e nefastas.

Vou poupar nomes em respeito às pessoas. Não sei se elas “desapitaram” ou não. De qualquer forma, merecem respeito.

Eu tinha 15 anos recém-completados e pouquíssima experiência de vida quando conheci o Centro Universitário Jacamar, ainda na Al. Joaquim Eugênio de Lima, em meados da década de 1970. Sou de uma família classe média alta, católicos praticantes, pais universitários. Para completar, no auge dos meus 15 anos era bem bonitinha, simpática, embora tímida, afável e, claro, dócil e ingênua de tudo, além de ter uma imensa vontade de mudar o mundo, fazer o bem, ser reconhecida, ter amigos.

Uma irmã, um ano mais velha do que eu, foi quem me levou ao centro, convidada por uma amiga do nosso colégio, já numerária. Mas eu nada sabia de Opus Dei, imagina... Eu cheguei num domingo, gostei do lugar, era todo mundo alegre e simpático. Era carnaval, tinha uma festinha animada, gostei do clima. Mas já no primeiro dia algumas coisas me chamaram a atenção. Primeiro, aquele bando de mulheres (só mulheres, claro, o que já achei estranho) usando saias numa época que poucas usavam... pra mim era muito esquisito. Depois reparei que todas tinham mais ou menos o mesmo jeito, o mesmo cabelo, o mesmo modo de se expressar. Agora, o que mais me causou estranhamento (mas não necessariamente para o mal naquele momento) foi quando uma moça que eu nunca havia visto mais gorda na vida me chamou para um canto e disse que havia gostado muito (isso com umas 2 horas de convívio apenas) de mim e que queria ser minha amiga. Só depois é que fui entender que se tratava de uma numerária fazendo apostolado de forma acintosa, como é de praxe na Obra. Enfim, essa moça era 5 anos mais velha do que eu e fiquei muito feliz por ela ter se aproximado de mim e me enchido de elogios. Achei o máximo ela querer saber tanto de mim e ter se interessado tanto por mim (eu quase não tinha amigas, era muito tímida e fechada em casa). Lembro que saímos algumas vezes para tomar café, comer doces, conversar. Aquilo era muito legal. Mas aí começaram as práticas espirituais, que também me soavam estranhas, exageradas, embora eu estivesse acostumada a ir à missa, a rezar. Enfim, 5 meses e meio depois de ter ido à primeira vez ao Jacamar, essa mesma moça que chama para um canto, numa daquelas nossas conversas, e me pergunta se eu nunca tinha pensado em ser da Obra (ela já estava morando no centro e me contou que havia entrado para o Opus Dei. Perguntou o que eu achava daquilo, fiquei meio sem saber o que dizer, mas achei esquisito). Diante da pergunta sobre minha vocação, vacilei, não sabia o que responder, não tinha a menor idéia do que aquilo significava e, sem ter idéia do que dizer disse “mais ou menos, sei lá, nunca pensei muito, mas também já pensei, não sei”. Aí ela insistiu e disse que achava que eu tinha vocação, que todo mundo no centro achava, que eu tinha de entregar minha vida a Deus, que eu não me arrependeria. Disse que eu deveria achar o máximo com apenas 15 anos saber por que motivo eu havia nascido, que eu era escolhida por Deus. Fiquei meio pasma, mas entrei no discurso dela (eu era realmente muito tonta) e disse que já tinha pensado sim em como era estar ‘do outro lado’, como ela. Aí, pronto, tive a “grande visão” a respeito da minha vocação... Tive muito medo de ir em frente, porque sabia que não podia casar, fiquei meio aflita, mas não comentei com ninguém. Nas conversas, fizeram-me acreditar que isso era uma coisa menor diante da escolha “divina”. Bem, aí começaram todas as normas e regras e tomei conhecimento de várias coisas: primeiro que tinha de usar saias sempre (o que pra mim era absolutamente antinatural), que não podia ir ao cinema nem ao teatro (outra coisa que me chocou muito), que para tudo tinha de pedir permissão ao centro, que tinha de dar dinheiro, usar o cilício e as disciplinas e fazer apostolado de qualquer jeito. Eu era muito ruim nisso de tentar convencer os outros, até hoje sou, especialmente quando não estou bem convencida do que quero vender, por isso sempre fui bem fraca de apostolado. Enfim, mas deixaram claro para mim que tipo de amiga interessava ao centro: as bem resolvidas e as de família com grana. E eu que achava que a gente ia ser santo no meio do mundo, sendo uma pessoa normal, com amigos normais... mudar o jeito de vestir, mudar meus hábitos, isso tudo era pra mim antinatural, eu chamava muita atenção na escola, em casa, todos passaram a me achar esquisita. Isso foi horrível!! Não me sentia do mundo, tive um choque ao saber que a Obra era isso. No final, sonhava em ser normal, usar calça, ir ao cinema, chorava porque eu havia sido “escolhida” , tinha ódio do meu destino...

Mas o que me chocou mesmo no Opus Dei, essa pseudo-obra de Deus, foi uma outra história (nem o cilício e a disciplina me doeram tanto!). A minha irmã que me fez conhecer o centro (vejam a ironia) tem uma doença chamada neurofibromatose. Quem sofre do problema tem a pele cheia de fibromas. Dá para imaginar que essas pessoas sofrem preconceito e têm baixa auto-estima. Pois um dia, nem me lembro mais se eu já era da Obra, uma das numerárias, se valendo de uma psicologia de quinta categoria, “lavou as mãos” sobre o caso da minha irmã. Disse que ela era uma pessoa muito esquisita, cheia de tiques nervosos e problemas, que provavelmente tinha apanhado muito do meu pai quando criança e que ela precisava se tratar. E, claro, que infelizmente a Obra não poderia fazer nada por ela. Desde esse dia – eu nunca soube o que aconteceu na conversa entre a numerária e a minha irmã – minha irmã ficou largada às traças no centro, até que deixou de ir. E mais: ficou com uma raiva enorme, imensa do lugar, a ponto de me ridicularizar porque eu passei a me vestir como as pessoas de lá e a brigar comigo toda vez que eu ia ao Jacamar. Em compensação, uma outra irmã, dois anos mais velha do que eu, de boa aparência, apitou mais ou menos na mesma época que eu. Foi muito duro ouvir aquilo sobre minha irmã. Faz 30 anos que isso aconteceu e até hoje me lembro detalhes do que a numerária me falou. Outro choque: minha mãe, apesar de católica, odiava o centro e o Opus Dei. Fazia de tudo para me tirar de lá, dizia que me manipulavam, que eram franquistas. Briguei muito com ela por causa da Obra e, no alto dos meus 15 anos, quanto mais ela me contrariava, mais eu queria ir ao Jacamar. Bem, por causa disso, não conseguia dinheiro para dar à Obra, que me cobrava. Minha contribuição era tão pouca que um dia me aconselharam a abrir a carteira da minha mãe e pegar sem ela perceber. Deus entenderia, segundo a diretora do centro. E assim foi que na minha adolescência furtei minha mãe várias vezes, apenas para agradar às diretoras.

Outro choque foi quando fui prestar vestibular. Sem perguntar nada, fiz inscrição para o curso de Jornalismo na PUC e de Letras na USP. Com a inscrição já feita, disseram que Jornalismo era um curso reprovado pela Obra e a PUC, então, nem pensar! Que eu só deveria prestar Letras. Na verdade, o que eu mais queria era Jornalismo mesmo. Então, ao acabar o colégio, prestei e passei. Contei ao pessoal do centro, elas me disseram para largar a faculdade. Cheguei a ir escondido do centro em algumas aulas, gostei muito, era o que eu queria, havia passado sem precisar fazer cursinho, mas não me deixaram seguir em frente, apesar dos meus argumentos. Diziam que era um curso muito politizado, que aquilo não era bom para uma filha de Deus. Muito deprimida, fui obrigada a mentir aos meus pais e a mim mesma, dizendo que não queria mais aquele curso e que iria prestar Letras. Meus pais não me deixaram largar a faculdade, trancaram o curso e pagaram um ano de cursinho para mim – fiz a contragosto, não querendo entrar na Letras, mais faltava do que ia, matava aula etc. Nessa altura, minha relação com a Obra e com Deus já tinha ido para o espaço, mas eu tentava manter as aparências de alguma forma. Tive depressão, sentia dores de cabeça terríveis, fiz meus pais se preocuparem comigo, me levarem em médicos, exagerava nas dores, vivia trancada na cama, dormindo, sem querer atender aos telefonemas do pessoal do centro. Não contava para ninguém minhas angústias, muito menos para as numerárias, que deveriam ser a essa altura minhas irmãs! Por fim, me envolvi com um rapaz... tinha quase 19 anos, mas ainda não havia me desligado do centro. Contei um dia à numerária que me atendia o que estava acontecendo e ela quis saber em detalhes até onde eu tinha chegado com o moço. Mas detalhes mesmo! E conforme eu ia contando ela ia se transformando num monstro, falando entre dentes, quase babando. Tinha enorme interesse naquilo que eu contava, e, ao mesmo tempo, parecia sentir muita raiva por eu ter experimentado aquilo e ela, ao menos até onde eu sabia, não ter passado por isso. Não se contentava com minhas respostas, me encostou na parede numa conversa alucinada, que nunca mais esqueci, dirigindo minhas respostas. Ao fim da conversa, me chamou de puta, disse que eu me vestia como uma puta (só porque neste dia estava com uma blusa com uma manguinha mais curta) e chegou a cuspir no meu rosto, com nojo de mim. Fragilizada, chorei muito, fui me confessar com um padre do Opus Dei (que também quis saber todos os detalhes), pedi perdão a Deus, me acabei de chorar. Óbvio que não queria mais ser da Obra, mas não sabia como, tinha muita culpa, me falavam de todos os horrores que acometem quem deixa a vocação. Minha irmã que havia apitado já tinha saído bem antes de mim, sem nada comentar comigo. Isso também foi terrível, numa conversamos sobre isso! No centro, me disseram que ela não tinha vocação, que isso acontecia. Insistiram um tempo comigo, mas aos poucos largaram mão também. Não me queriam mais lá, nem eu a eles. Eu tinha comigo um material da Obra (livros, folhetos) e me prontifiquei a devolvê-los, tal qual me solicitavam. Uma numerária marcou comigo numa igreja e me deu o recado: “Você não é mais da Obra”. Senti um misto de alívio e culpa com a expulsão. Ela me tratou com certa pena, como se eu fosse uma coitada, mas não me deu muita satisfação dos motivos da expulsão. Foi tudo muito informal, na verdade. Disse que naquele momento o que ela e a Obra poderiam fazer por mim seria me dar uma orientação para que eu não ‘caísse’ mais tão fundo, para que eu garantisse minha salvação. Então ela combinou comigo de me encontrar na semana seguinte, para nova conversa. E disse que daria essa assistência por um tempo. No dia, fui ao local marcado e lá fiquei a esperar a moça, que não só não apareceu como nunca me deu uma satisfação – nem ela nem ninguém da Obra. Como eu havia pecado gravemente ao olhos do Opus Dei (só havia trocado umas carícias com o namorado, não tinha nem deixado de ser virgem!) havia me tornado um lixo, um ser humano de quinta categoria, e provavelmente chegaram à conclusão de que ninguém deveria mais perder tempo comigo. A tal amiga que ‘descobriu’ minha vocação eu nunca mais vi, ela mudou de centro, essa distância para mim também me fez muito mal, foi um elo quebrado de repente numa fase tão complicada da minha vida. Desde esse dia, de 1979, nunca mais tive nenhum contato com o Opus Dei (aliás, sempre fujo do tema quando por acaso alguém toca nele, tenho muito medo que saibam do meu passado.)

Enfim, anos se passaram, casei, tenho dois filhos, muitos amigos, sou uma profissional de respeito na área que escolhi. Mas o Opus Dei é uma pedra no meio do meu caminho. Sonhei anos com essa Obra, ainda sonho, e nunca, mas nunca mesmo, consegui falar disso com alguém - nem com meus melhores amigos, nem com meus pais, nem com minhas irmãs (nem com a que apitou um dia), nem diante dos terapeutas que fui, nem com meu marido. Olho meus filhos, ainda crianças, e acho que nunca vou conseguir falar sobre isso com eles também. É muito angustiante ter esse segredo, tenho crises até hoje com isso e, diante desse quadro, imagino o quanto de alívio o site me proporcionou. Vejo que há outras pessoas no mesmo barco. No fundo, gostaria mesmo de poder conversar pessoalmente com um ex-membro da Obra, alguém com lucidez suficiente para trocar idéias comigo sobre minhas angústias e me ajudar a apagar de vez esse terrível fantasma. Será que isso é possível?

Muito obrigada pela atenção, de coração.

Um abraço fraterno

C.P.