Minha passagem pelo Opus Dei: ingresso e saída

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Eu ingressei no Opus Dei como numerário em 1973, com 19 anos, quando estava no primeiro ano da Escola Politécnica da USP e deixei a Obra em 1989, com 35 anos, quando morava em um dos seus Centros em São José dos Campos e era professor do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Portanto, passei na Obra 16 longos anos.

Darei o meu testemunho a respeito do Opus Dei baseado na minha experiência e vivência, como membro numerário e baseado em uma longa reflexão do que se passou comigo. O relato que farei se refere basicamente ao modo como ingressei e em que situação deixei o Opus Dei.

Não guardo ressentimentos contra as pessoas da Obra, apesar do modo como fui induzido a ingressar e permanecer nesta instituição e apesar do abandono humano, material e espiritual, do desprezo e da indiferença com que se é tratado após a saída. Não guardo ressentimentos contra as pessoas, pois considero que os desmandos praticados pelo Opus Dei tem origem na sua estrutura e constituição. Uma vez dentro dos seus quadros não há como não atuar segundo o chamado “Espírito da Obra”, que o seu Fundador diz ter recebido diretamente de Deus, portanto os seus membros, que segundo o Fundador não devem ter outro fim senão o corporativo, agem uns mais e outros menos livremente segundo esta práxis.

Espero que o relato que farei sirva de reflexão, não a respeito de mim e da minha vida, mas a respeito do modus operandi da Prelazia do Opus Dei.

Ingresso no Opus Dei

No início de 1973 o meu primeiro contato com a Obra foi através de um numerário que também era calouro na Escola Politécnica, hoje ex-numerário. Em seguida comecei a freqüentar o Centro Universitário do Pacaembu, que tinha como sacerdote o Pe. RLC. As meditações do Pe. RLC eram empolgantes e a direção espiritual com ele também era muito boa. O ambiente do Centro era alegre e estimulante. As pessoas mostravam interesse por você e pelas tuas coisas. Havia várias atividades culturais e esportivas, dessas as que mais me atraiam eram as escaladas e caminhadas por montanhas.

Foi assim que começou a minha caminhada de vida pelo tal plano inclinado, como é chamado no Opus Dei. Ou seja, inicialmente adorei o Centro, as pessoas, a atenção que me davam e as atividades que desenvolviam, assistia as meditações do Pe. RLC, posteriormente fui convidado para ter direção espiritual com ele, veio então a participação nos círculos (de formação cristã), um convite para um convívio no Sitio da Aroeira, lá conheci pessoas de outros Centros (Vila Mariana, Pinheiros e Sumaré). Seguindo ladeira acima, o numerário que me tratava (o que era encarregado de acompanhar a minha subida pelo tal plano inclinado) começou a fazer leituras e meditações comigo, veio um retiro e então o arremate final: a colocação da vocação.

Alguns dias antes de me falarem que eu tinha vocação de numerário, não fui eu quem achou que eu tinha, me disseram que as pessoas que moravam no Centro, os numerários, eram celibatários. Recordo que isso de celibato foi um grande choque para mim, pois pensava que aqueles meus amigos eram cristãos correntes como apregoavam, cristãos correntes se santificando nas suas atividades cotidianas e não religiosos de vida consagrada. Quando me falaram que eu tinha vocação para ser numerário eu descartei tal hipótese, pois não via com clareza esse tipo de vida para mim e estava determinado a me casar e ter uma família.

Conversei com o Sacerdote do Centro sobre aquilo que me propunham e ai veio o golpe fatal, desleal, que me marcou para o resto da vida. O sacerdote me disse que era Cristo que passava e me chamava. Disse também que Cristo poderia não passar novamente. Como para bom entendedor meia palavra basta e eu estava, ou melhor tinha sido colocado pelo tal plano inclinado, numa situação de ótimo entendedor, entrei em pânico diante da possibilidade de rejeitar a chamada de Deus e de não ter outra chance na vida. O meu pânico foi pelo modo como a tal de vocação foi proposta e pela rapidez com que deveria decidir e pela possibilidade de dizer não a Deus, que segundo me disseram estava passando e poderia não passar novamente. Estava em um beco sem saída. Diante de tal situação perturbadora disse sim, apesar de ter dito claramente para o Sacerdote que fazia isso por dever e que estava muito triste. Aí veio o lembrete que me acompanharia ao longo de todo o meu viver no Opus Dei: Deus ama a quem dá com alegria e para que eu pedisse a Deus a recuperação da alegria. Procurei então o Diretor do Centro e disse que queria ser da Obra. Escrevi a carta ao Padre (nome dado ao Fundador e a todos os seus substitutos na direção da Prelazia) e, pronto, já estava dentro, cumprindo a vontade de Deus, cumprindo o meu dever, amargurado, triste, mas obediente. Recebi também a indicação para não comentar a minha decisão de pertencer ao Opus Dei com ninguém, pois ela podia ser mal compreendida pelos que não eram de casa (da Obra).

Agora vejo claramente a realidade daquilo que muitos acusam o Opus Dei: o uso da direção espiritual, onde você abre a alma ao Sacerdote, como ferramenta de manipulação. Vejo como fui manipulado e docemente coagido a agir e tomar decisões que eram orquestradas previamente por Diretores leigos dos Centros em parceria com o Sacerdote, o diretor espiritual. Logicamente, segundo eles tudo em nome de Deus e com a maior das boas e santas intenções.

Esse tipo de manipulação e coação continua depois que se ingressa, já que se deve dizer tudo (tudo mesmo: pecados, faltas, pensamentos, omissões etc.) antes da confissão para o Sacerdote, teu diretor espiritual, para que ele possa dispor destes dados nas reuniões do conselho local do Centro. O dizer absolutamente tudo vale também para a conversa, chamada fraterna, com o Diretor do Centro ou alguém indicado por ele. Na minha opinião essa é uma forma sutil de se violar o segredo da confissão que a Igreja tanto preza.

Voltando a minha história, pouco tempo depois de apitar (jargão que significa ingressar na Obra) fiquei sabendo que na Obra existiam membros casados. Fiquei desconcertado, decepcionado e revoltado. Mas o que fazer já que Deus, segundo eles, me queria numerário?

O plano inclinado continuou: cilício, disciplinas, ficar muitíssimo tempo no Centro e pouquíssimo tempo na casa dos meus pais, que agora eram a minha família de sangue já que a família mais importante era a sobrenatural a Obra e, por fim, fui morar no Centro.

Quando ainda morava no Centro Universitário do Pacaembu fui levado para a Comissão Regional no Sumaré para fazer a Admissão (uma das etapas da incorporação à Obra), falei para o Dr. AG da minha profunda tristeza a respeito da vocação. Não me lembro exatamente da sua resposta, mas presumo que estava na linha do oferecimento da contrariedade a Deus e de que Deus ama a quem dá com alegria. Não me recordo mais se na Oblação (outra etapa da incorporação) falei novamente da minha tristeza, ou se já tinha desistido de tocar nesse assunto.

Eu fui uma das muitíssimas vítimas da linguagem dúbia do “compelle entrare” (forçar a entrar) tantas vezes repetido nas pregações internas no Opus Dei. Eles usaram ao pé da letra essa recomendação evangélica, já que quem plantou a vocação em mim não fui eu, e a meu ver agora muito menos Deus, mas pessoas da Obra atuando em conjunto e em nome dela.

Um pequeno detalhe que mostra a minha disposição interior foi a minha reação diante da morte do Fundador do Opus Dei em 1975. Eu tinha acabado de ir morar no Centro quando recebemos a notícia da sua morte, que foi dada a todos na sala de estar do Centro pelo Diretor. Houve uma grande comoção, principalmente por parte das pessoas com mais anos na Obra, ou que tinham conhecido pessoalmente o Padre. A minha reação interior foi de absoluta frieza, pois via nele a causa do meu sofrimento de ter que pertencer a Obra como numerário. Passou pela minha cabeça, apesar de estar a poucos anos na Obra, aquilo que os autores do livro “Opus Dei - os bastidores” comentam: a esperança de que agora haveria uma reforma no Opus Dei e que eu poderia me libertar do julgo ao qual estava submetido. Doce ilusão.

Ainda sobre o episódio da morte do Fundador tenho a lembrança de um outro detalhe pequeno, mas que me marcou muito. Um dia veio a ordem de que se entregassem todas as fotos que se tinha do Fundador. Eu tinha recebido uma de presente na qual havia uma invocação a Nossa Senhora com a letra do Fundador. O que me chocou muito foi o fato de pessoas mais velhas na Obra terem que entregar essa recordação pessoal que tinham consigo há muitos anos. Notei que houve tristeza, relutância e constrangimento. Achei essa determinação um ato vil e maldoso.

Primeira saída

Terminei o Curso de Engenharia Eletrônica em 1977 na Escola Politécnica da USP quando morava no Centro de Estudos do Sumaré. Em 1978 passei a morar no Centro Universitário da Vila Mariana. Esse ano foi bastante ameno para mim, gostei muito do Centro e das pessoas que lá moravam.

Em 1978 eu estava trabalhando no meu primeiro emprego. No fim desse ano fui convidado pela Comissão Regional para iniciar com o Pe. JSCL, que na época era leigo, o trabalho da Obra em São José dos Campos. Aceitei com prazer o pedido. Em dezembro de 1978 pedi demissão do meu emprego e depois de um curso anual (tempo de formação de aproximadamente 30 dias no Sitio da Aroeira) passei a morar com o JSCL em São José dos Campos. Ficamos sozinhos nessa cidade um tempo até virem mais numerários. Um Sacerdote vinha semanalmente atender o trabalho da Obra que se iniciava de modo estável nessa cidade. Felizmente já em fevereiro de 1979 nós já tínhamos um emprego, o JSCL em tempo parcial e eu em tempo integral.

O JSCL depois de morar vários anos em de São José dos Campos voltou para São Paulo, foi para Roma, foi ordenado pelo Papa João Paulo II. Em 2005 deixou a Obra, mas não deixou o sacerdócio. Dos numerários que apitaram ou moraram no Centro de São José dos Campos que conheço onze deles não pertencem mais a Obra.

Lembro que a minha ida a São José me isolou bastante dos outros membros da Obra. Nós íamos algumas vezes a São Paulo aos sábados para algum recolhimento e um Natal passamos no Centro da Obra de Campinas e o outro no Centro de Pinheiros em São Paulo. Apesar de me dar bem com o JSCL e com os demais numerários que vieram morar no Centro de São José dos Campos a minha insatisfação e tristeza de fundo nunca passaram e com o tempo foram aumentando.

Gato que brincas na rua
como se fosse na cama,
invejo a sorte que é tua
porque nem sorte se chama,
bom servo das leis fatais
que rege pedras e gente
que tens instintos gerais
e sentes só o que sentes,
és feliz pois és assim,
todo o nada que és é teu,
e vejo-me e estou sem mim
conheço-me e não sou eu.
(Fernando Pessoa)

Em 1986 e 1987 a minha insatisfação na Obra já era quase que insuportável. Nesse período aconteceu algo inusitado. Uma moça com a qual tinha algum contato profissional se interessou por mim e é claro que eu notei isso. Apesar de muita relutância também acabei me interessando por ela. Isso agravou, logicamente, muito o meu descontentamento em estar na Obra. O meu desejo de ter um relacionamento com essa moça e uma família foi confidenciado por mim tanto para o Diretor como para o Sacerdote do Centro, eu só não disse a eles quem era aquela pessoa, apesar de insistirem muito para que eu a identificasse. Em um curso anual o meu diretor espiritual foi o Pe. RLC e ao comentar com ele esse fato ele me deu um conselho que acabei considerando sábio. Ele me disse para não deixar a Obra por causa de nenhuma pessoa, pois a probabilidade de não dar certo o namoro era grande e isso me tornaria muito infeliz, cheio de dúvidas e arrependido. Esse conselho, apesar de doloroso, foi seguido por mim. Essa paixão acabou passando e eu e ela perdemos o contato. Nunca mais nos encontramos.

No auge da minha crise e revolta, em meados de 1987, comuniquei ao Diretor que iria deixar a Obra e o Centro. Como ele percebeu que eu estava decidido e que não recuaria nessa minha determinação, pediu para que eu fizesse isso com discrição e em uma determinada manhã, quando somente ele e o Sacerdote estariam no Centro. Fui para São Paulo, peguei emprestado o carro do meu pai e na manhã combinada peguei minhas roupas e fui embora.

Passei a morar com meus pais em São Paulo, viajando todos os dias para São José dos Campos onde trabalhava. Essa foi uma época pavorosa em que eu fiquei deprimido, com problemas de sono e de concentração. Jamais falei disso com ninguém nem mesmo com os meus pais e familiares. Eu estava também em um estado de revolta contra Deus e rezar, fazer oração, ou ir a Missa eram simplesmente situações insuportáveis para mim.

Um dia, logo após a minha saída recebi um telefonema do Diretor do Centro dizendo que queria conversar comigo. Marcamos um encontro e ele me informou que eu ainda não tinha saído da Obra e que a Comissão Regional tinha me dispensado temporariamente da vida em família, ou seja, de morar no Centro. Nesta condição eu deveria conversar com ele, o diretor, semanalmente e conversar e confessar com Sacerdote do Centro, semanalmente ou quinzenalmente não me lembro. A conversa com o Sacerdote seria na sacristia de uma Igreja da cidade de São José dos Campos, no dia em que ele atendia confissões das pessoas em geral. Nessa condição eu logicamente não deveria aparecer pelo Centro e muito menos procurar outras pessoas da Obra.

Segui o esquema combinado e fiquei muito desconcertado e aborrecido sabendo que não tinha ainda encerrado o meu drama. Nas conversas com o Diretor ele procurava sempre me convencer a voltar e o Sacerdote se concentrava em me fazer cumprir o plano de vida (oração, leitura de um livro de formação, evangelho, terço, Missa etc) que deve ser seguido rigorosamente por todo numerário. Havia uma grande insensibilidade por parte do Sacerdote, pois ele não conseguia notar que eu não suportava realizar a menor dessas normas, dado o meu estado emocional e de revolta.

Um pequeníssimo detalhe, sem importância ficou gravado na minha memória até hoje. O Diretor ou o Sacerdote me perguntaram se eu tinha o livro do Fundador chamado “É Cristo que Passa”. Eu disse que não e eles ficaram de me trazer um exemplar desse livro. Em um determinado dia o Sacerdote me entregou o livro e teve a coragem de pedir para que eu pagasse pelo livro. O preço era pequeno e logicamente eu poderia pagar sem a menor dificuldade. O que me chocou foi que apesar de que eu entregara, desde a minha apitagem tudo o que ganhava (inicialmente mesada e o dinheiro de aulas que tive que dar quando cursava a Politécnica e a partir de 1977 meu salário) eles tiveram a coragem de me cobrar o livro. O que chocou mais ainda é que o livro era um exemplar usado, devia ser da biblioteca de leitura do Centro. Seria esse o “apostolado de não dar”, como gostava de dizer o Fundador?

Apesar da minha angustia as conversas com o Diretor e o com o Sacerdote me levaram a decidir a voltar a morar no Centro da Obra. Ficou combinado que eu faria em Curso Anual (no início de 1988) e logo em seguida iria voltar novamente a morar no Centro de São José dos Campos. Também ficou claro para eles que eu voltava por dever e temor a Deus, dever de seguir a vocação que eles diziam que eu tinha, e que a minha insatisfação continuava.

Voltei e a primeira coisa que fiz foi entregar o que tinha ganho de salário nos aproximadamente sete meses em que fiquei fora. No Centro, obviamente ninguém me perguntava o que tinha acontecido nos meses que fiquei fora, e eu logicamente não comentei absolutamente nada com ninguém.

Segunda saída

Assim que retornei ao Centro a minha angustia aumentou e a minha revolta contra Deus atingiu o seu ápice. Como não queria ser da Obra, mas diziam que eu tinha vocação comecei a pedir e a desafiar a Deus que me tirasse a vida. Essa era para mim a única saída honrosa possível. Também acabei fazendo pequenos atos de rebeldia que, por exemplo, me levaram em um domingo a ir visitar a minha família em São Paulo contra a vontade do Diretor do Centro. Logicamente ao voltar recebi uma boa bronca.

O meu maior desejo naquela época era morrer. Eu recordava com freqüência das palavras do Fundador da Obra que dizia que era melhor pedir a Deus a morte que sair da Obra. E era isso que eu pedia e desafiava a Deus que me concedesse. Sobre esse desejo e estado de espírito em que me encontrava eu contava freqüentemente ao Diretor e ao Sacerdote, meu diretor espiritual.

Recordo que por fim me recusava a ir com freqüência semanal à direção espiritual com o Sacerdote e também que queria confessar sem ter que dizer do que me confessaria na direção espiritual com ele. Isso me custou algumas correções do sacerdote. Chegou um momento em que eu não suportava mais assistir a Missa diária. Eu era incapaz de fazer as normas do plano de vida, apesar da insistência e da cobrança que me faziam. Eles eram incapazes de entender que era impossível para mim cumprir esse plano de vida.

Como pedir a Deus que me tirasse a vida não dava resultado cheguei a pensar na possibilidade de colaborar no processo. Cheguei a comprar em uma farmácia bastante comprimidos de um analgésico e disse um dia para o Sacerdote que iria começar a tomá-los para provocar alguma reação mortal. Ele me deu uma bronca e com certeza notificou o Diretor que por sua vez deve ter passado a informação para a Comissão Regional.

A coisa chegou a um ponto que o Diretor do Centro resolveu aceitar novamente a minha saída do Centro, obviamente tudo isso deve ter sido monitorado pela Comissão Regional. Ele combinou comigo um dia e horário discreto e no dia combinado ele, com o carro do Centro, me levou para a casa dos meus pais em São Paulo. Levei novamente somente os meus pertences pessoais e em dezembro de 1988 fui morar novamente em São Paulo. Passei nesse ano o pior Natal da minha vida.

Saída da Obra

Já morando em São Paulo eu deveria ir à Comissão Regional, para conversar com o encarregado dos numerários, o Vogal de São Miguel, que era o EC. Ele me recomendou um tratamento psiquiátrico com um médico da Obra, o Dr. P, que tinha morado comigo no Centro de Estudos. Fui acho que em quatro ou cinco seções, fui muito bem atendido por esse médico que era meu amigo. Tomei um remédio, que não sei qual foi, mas que me ajudou a reconciliar o sono, pelo menos por um período. Logicamente quem pagou a conta do tratamento também fui eu. Novamente o preço não foi exorbitante e eu poderia pagar, mas senti novamente, pelo menos, uma leve desconsideração, por quem passou quase 16 anos entregando tudo o que ganhou para a Prelazia do Opus Dei e que apesar de estar morando fora do Centro ainda era da Obra.

Depois desse breve tratamento fui chamado novamente na Comissão Regional para a ultima conversa e para escrever a Carta ao Padre pedindo a minha saída.

Conversando com a Vogal de São Miguel externei a ele a minha preocupação sobre a minha vocação a Obra, aquela que em 1973 diziam que eu tinha, já que a minha solução de saída honrosa não tinha sido atendida por Deus. Ele então me perguntou se eu estava angustiado por não ser mais um gerente da Jonhson & Jonhson. Fiquei meio desconcertado com a pergunta e não sabia como responder. Ele insistiu na pergunta e eu respondi que não, pois eu nem mesmo trabalhava nessa empresa. Ai ele me disse laconicamente que ele não sabia se eu tinha tido algum dia vocação para o Opus Dei, ou se eu tinha tido a vocação e a tinha perdido (jogado pela janela, como dizia o Fundador). Disse ainda que o que ele tinha absolutamente certeza é que eu não tinha mais vocação para a Obra. Portanto, eu não devia me angustiar por não ser mais diretor da Jonhson & Jonhson e nem por não ser mais do Opus Dei.

Eu não sei se foi nessa acasião ou na conversa anterior que ele me contou também do caso de um numerário leigo, que eu conhecia, que esteve no Colégio Romano, na sede do Opus Dei em Roma, que voltou para o Brasil e depois de um tempo deixou a Obra. Segundo ele, esse numerário estava muito arrependido e tentando buscar a salvação da sua alma de todos os meios possíveis. Era uma pessoa que ia diariamente a Missa, procurava cumprir as normas espirituais dos numerários e que pedia a Deus incessantemente pela sua salvação.

Acho que o recado estava dado de forma clara e direta: eu não tinha mais vocação para a Obra, muito provavelmente eu a tinha jogado pela janela, como costumava dizer o Fundador do Opus Dei, e era bom eu implorar a Deus pela minha salvação.

Ele me pediu então para que eu escrevesse a carta ao Padre pedindo a minha saída e que na carta eu fosse educado. Escrevi a carta educadamente, inclusive manifestando o meu desejo de ser colaborador da Obra.

Ele me pediu ainda para que esperasse um retorno telefônico dele dizendo que o meu pedido de saída tinha sido aceito pelo Prelado do Opus Dei e que, enquanto não me confirmasse o aceite do Prelado eu deveria me comportar como qualquer membro numerário, incluindo o trato com mulheres. Nos despedimos e depois de algum tempo recebi o telefonema dele informando que não era mais da Obra.

Das einzig Wichtige im Leben
sind die Spuren von Liebe
die wir hinterlassen, wenn
wir weggehen. (Albert Schweitzer)
Aber, weggeschmissen haben sie alles.

Um outro detalhe é que o testamento cerrado, que é registrado mas que não fica no cartório, não me foi devolvido. Esse testamento é feito por acasião da fidelidade ao Opus Dei, uma das etapas jurídicas de incorporação a Obra. Nesse testamento consta, segundo o modelo que me deram para fazer, uma retratação de possíveis erros doutrinais contra a fé católica, o modo de como eu devia ser sepultado (somente com uma túnica branca) e a doação de toda a herança e bens que tivesse para a OSUC. A revelação desse testamento no site opuslivre seria magistral.

Depois da Saída

Entrei para a Obra com 19 anos, porque eles acharam que tinha vocação, e deixei a Obra com 35 anos depois de também eles acharam que eu não tinha mais vocação.

Entrei para a Obra porque eles disseram que Cristo passava e me chamava, não podia esperar e, se passasse, poderia não voltar novamente. Deixei a Obra porque eles disseram que ou eu nunca tive vocação ou a tive e a perdi (joguei pela janela).

Se não entrasse para o Opus Dei poderia ter dito não a Deus e frustrado os seus planos para mim. Saí sem vocação, sem nada de material, angustiado, com a alma e o coração feridos, sem nenhuma ajuda espiritual e com a insinuação de que procurasse ardentemente a minha salvação.

Desde a minha saída nunca mais foi procurado por ninguém da Obra. Ninguém quis saber o que aconteceu comigo: se eu estava vivo ou morto, com saúde ou doente, feliz ou infeliz, se continuava católico ou não. De fato, não tinham por que me procurar, eu era mais um que tinha deixado a Obra, era a tal da “impessoa”, um mau exemplo e um perigo para a vocação dos demais, e vale a conhecida praxis da Obra a respeito dos que saem.

Ocasionalmente encontrava e conversava amenidades ou assuntos profissionais com dois supernumerários e um membro adscrito com quem por motivos de trabalho continuei tendo um escasso relacionamento. Casualmente encontro na rua quatro numerários conhecidos meus, dois deles moraram comigo, durante muitos anos, em três Centros da Obra e por esse e outros motivos tenho para com eles uma grande estima. Trocamos cumprimentos e breves palavras, o que é muito pouco para quem foi grande amigo. Mas grande amigo não pode haver na Obra, pois as amizades particulares são proibidas.

Depois de muitos anos uma pessoa da Obra me procurou para pedir uma contribuição financeira para a OSUC, pediu um salário mínimo por mês. Pensei um pouco, mas resolvi não contribuir. Pediu também para que assinasse o circulo de Leitura, mas também não assinei.

Hodie et Nunc

Contra os vaticínios do Fundador do Opus Dei tenho a dizer que nunca me arrependi de ter deixado a Obra e que depois de a ter deixado é que fui realmente feliz e livre.

O Fundador dizia que as coisas pequenas que trazem a felicidade para as pessoas seria como o fel na boca dos que a deixam. Nunca experimentei essa maldição do Fundador da Obra. Devo dizer que um dos meus mais terríveis pesadelos, que me acompanharam por esses anos que estou fora da Obra, é sonhar que de algum modo voltei a ser numerário e que desesperadamente tento sair e fugir dessa situação.

Fora da Obra eu nunca consegui compreender de modo mais ou menos lógico o que se passou comigo até conhecer, nesse ano de 2005, o depoimento de outros ex-numerários(as) nos sites opuslivre, opuslibros e ODAN. Vendo a semelhança do que se passou comigo e com muitas outras pessoas pude ordenar os fatos e ter uma visão mais clara do que é realmente a tal Obra de Deus. Sobre essa minha percepção tenho escrito ocasionalmente no site opuslivre.

Sobre os dizeres de que Deus ama quem dá com alegria, minha sina na Obra, é interessante analisar o texto evangélico um pouco mais completo: “Que cada um dê conforme tiver decidido no seu coração, sem pesar nem constrangimento, pois Deus ama quem dá com alegria (2Corintios9,7). A releitura que fizeram no Opus Dei desse texto deve ser a seguinte: “Que cada um dê conforme os Diretores decidiram no seu coração, doa a quem doer, pois Deus ama quem dá com alegria...”

David Fernandes